sábado, 23 de fevereiro de 2013

44- O ano da predição



44- O ANO DA PREDIÇÃO







O ano de 1970 me reservaria uma nova situação. Não que fosse inesperada, mas quando não se quer que uma coisa aconteça, a gente prefere pensar que ela não é possível. Vã ilusão. Aconteceu. No meio do ano, depois das férias de julho, Maria Goretti apareceu com um namorado. Era inevitável; era a ordem natural das coisas. Eu não tinha por que questionar. Maria Goretti, enquanto Maria Goretti, era uma pessoa normal. Egoisticamente, temi, por causa daquilo, que tivesse chegando o tempo de Chiara se despedir. Para meu alívio, descobri que era cedo. Não posso nem dizer que tenha havido uma diminuição de nossos encontros. O namorado dela era de Sete Lagoas, e só vinha a Matozinhos nos finais de semana. E sábado e domingo eram mesmo os dias em que eu menos falava com Chiara. Portanto, o fato não me afetou. Apesar do medo inicial.

Durante todo aquele ano, não me havia encontrado nenhuma vez com Maria Goretti ou Chiara em Belo Horizonte. Nossos encontros davam-se somente em Matozinhos. Nem os nossos horários de ônibus, de manhã, para as aulas, e nem mesmo os retornos para casa coincidiam. Por causa disso, surpreendi-me quando, logo no comecinho de agosto, numa segunda-feira, encontrei um bilhete no meu armário da Escola de Belas Artes.

“Preciso falar com você. Venha à Savassi. Encontre-se comigo, hoje às duas, na frente do Cine Pathé”. Sem assinatura, mas a letra era inconfundível. Perguntei a alguns colegas quem tinha recebido o bilhete. Márcia, uma colega, fez-me a descrição de uma moça que passara ali enquanto eu estava no laboratório fotográfico. A descrição confirmou ser ela. Torci, então, para que a manhã passasse logo.

Vinte pras duas cheguei ao local. Muito mais cedo do que o combinado. Por mais que eu estivesse acostumado, encontrar-me com Chiara ainda me dava uma certa ansiedade. Às duas em ponto ela chegou. Deu-me dois beijos, e eu adorei ter de novo aquele gesto carinhoso. Ajudei-a a carregar seus livros, e resolvemos ir a uma lanchonete na Rua Sergipe, quase esquina com Tomé de Souza. Pedimos um suco, e reparei como ela estava bonita; não Maria Goretti, mas Chiara. Era incrível a transformação que acontecia naquela mulher, quando Chiara chegava: charme, sensualidade, classe, voz rouca, luz nos olhos, sorriso exuberante. Tudo isso cercado pela aura do suave perfume mágico de gardênia. Ela falou primeiro, pegando minha mão num afago carinhoso:

- Tava com saudades de você!

Ficou alguns segundos me olhando e dando-me, também, a chance de olhá-la. Havia vezes em que não precisávamos nos falar. Bastava-nos estar juntos.

- Vê só... que idéia genial que eu tive! - ela retomou a conversa.- Aqui em Belo Horizonte, podemos nos encontrar muitas vezes, o tanto de vezes que quisermos, que ninguém nos reconhecerá. E se alguém de Matozinhos, por um acaso, vir a gente juntos, estará vendo Beto e Maria Goretti. Não há nada de mais nisso!

Concordei feliz.

- Temos ainda um bom tempo juntos - disse-me.

Fiz um ar de indagação, não entendendo o quê, de fato, ela queria dizer.

- Hoje eu já posso te dizer desse tempo que ainda vamos ter, nós dois.  Pelo menos mais uns oito anos. - emendou.

Quis saber por que e ela me disse que tinha que ser assim.

- Assim está determinado. Você terá ainda, num futuro próximo, uma grande mudança na sua vida. Você pode mesmo, e isso é quase certo, mudar-se de estado. Achei estranho, mas acostumara-me a não duvidar dela. Pensei nas armadilhas do destino e fiquei imaginando para onde é que eu poderia ir, e que determinação era essa, além de tentar calcular mentalmente em quais aventuras eu ainda poderia me meter. Mesmo assim, tentei argumentar:

- Não quero ir para lugar nenhum. Não quero mudar de estado.

- Senta aqui pertinho de mim...- ela pediu.

Eu, que estava em sua frente, sentei-me ao seu lado. Abracei-a, dei-lhe um beijo no rosto, e ela fez uma expressão triste.

- Primeiro quero te dizer uma coisa - ela falou emocionada.- quando isso acontecer, eu já terei ido embora. Eu serei uma lembrança boa para você e irei feliz sabendo que te deixo bem. Obrigado - ela continuou - por ser assim meu amigo, compreender-me tanto e gostar assim de mim. Haverá o momento, não aqui deste modo que conhecemos, que a gente se encontrará de novo, e aí será bastante possível que nós nunca mais nos separemos. Obrigado por ser tão compreensivo e não me pedir mais do que eu posso dar agora. Só quero dizer pra você ficar tranqüilo e se preparar para essa nossa separação daqui a uns anos. Você não deve sofrer. Você vai sentir saudades, mas será uma saudade gostosa. Você terá um novo caminho depois disso, uma família para cuidar, novos projetos para cumprir.

Quis saber mais, curioso, da mudança que ela previa para mim e ela me disse que talvez fosse um estado do Sul. Seria - isso era certo -, minha afirmação profissional, minha definição afetiva e uma fase de muita segurança para mim.

Não duvidei porque sabia que não adiantava.

- E tenho mais uma coisa a dizer. Você vai arranjar trabalho, um bom trabalho aqui em Belo Horizonte primeiro. Só que o Sul espera você. Isso está escrito. Posso ver você e sua família, seu trabalho e seus novos amigos. Não adiantaria, se fosse o caso, e eu sei que você não fará isso, lutar e dizer que não. Está escrito no seu destino.

Tentei ainda argumentar, falar alguma coisa...

- Mais, não posso dizer. – ela falou.

Pediu-me com um sorriso lindo que eu deixasse de ser curioso e propôs que pedíssemos outro suco. Comentou sobre Maria Goretti; estava feliz pelo fato de a amiga ter arranjado um namorado legal e sentiu que ela também teria um futuro feliz, mas previa que não seria com esse namorado. Comentou ainda que era enorme a gratidão que sentia por Maria Goretti. Ficava feliz porque a sabia, também, muito protegida. Afirmou ainda que, aos poucos, eu e ela ficaríamos um pouco mais amigos.

- Tantas coisas estranhas nos acontecem - eu disse – e fico sempre tentado a exigir de você uma resposta que talvez você não possa me dar. Com todos esses anos, por mais que na maior parte do tempo eu evite questionar ou pensar muito, um momento como esse, que sinto, é de revelações, me força a perguntar, falar de minhas curiosidades. Porque é tudo assim tão diferente? Porque meus sonhos são tão reveladores? Porque o mesmo cenário, a mesma impressão de tempo? Porque?

Eu a sentia triste cada vez que eu a inquiria desse modo, sentia que ela suspirava como se buscasse forças para dizer que me negaria respostas, ou então, eu sabia: suas respostas eram incompletas, tangenciavam minhas dúvidas, mas não me prestavam esclarecimentos.

- Eu sei que você quer saber muita coisa e sei também que eu nunca te digo. Confie em mim, é só o que peço.

Chiara tomou a minha mão e abrigou-a entre as suas, com carinho. Beijou-me o rosto e pediu que eu a olhasse. Com seus olhos extremamente profundos, como se me desvendassem a alma, ela repetiu:

- Confie em mim. Não deixarei, nunca, que nada de ruim te aconteça. Tem coisas que é melhor você não saber. Aquela resposta me fez entender que nem sempre eu poderia ter minhas dúvidas esclarecidas.

Naquela tarde, ela me fez ainda lhe prometer uma coisa: nunca me envolver diretamente em conflitos políticos. Sabia que eu ajudava uns amigos que sofriam perseguições do Regime Militar e pedia-me que tivesse cuidado. Disse que apreciava a maneira despojada como eu e outras pessoas nos entregávamos àquele tipo de ajuda, mas temia, por mim e pelos meus amigos, que nós nos entregássemos mais àquela luta do que podíamos. Via-se, ali, que o controle que ela tinha do meu futuro e de minhas ações, era parcial e relativo. Havia, em minhas atitudes, a ação do livre arbítrio. Eu deveria ser responsável pelos meus atos.

Chiara parecia saber que muita coisa ainda me aconteceria. Algo, no entanto, dizia-me que ela estava tranqüila quanto ao meu futuro. Isso me fazia supor que eu não corria perigos. Deveria, é claro, manter a serenidade e conservar o bom senso.

Como ela falava do meu futuro com tanta segurança, arrisquei uma afirmação:

- Pelo visto, não vou para o exterior fazer os cursos que eu quero?

- Não, você não vai.- respondeu – Mas você vai ajudar outras pessoas a ir. Você poderá ir, sim, a passeio, bem mais tarde, daqui a alguns anos. Nada por agora.

Abro aqui parênteses nesse relato, para confirmar que ela tinha razão. Não fui, estudar como eu pretendia. Ajudei um pouco Cristina e Maria Célia, duas amigas, anos depois, em 1976, com aulas de Modelo Vivo, preparando-as para uma escola de arte na França.



E tivemos um resto de tarde agradabilíssimo. Tão bom que não vimos o tempo passar. Acertamos, ali, que pelo menos uma vez por semana nos encontraríamos. Aquela possibilidade me deixava muito feliz

Voltamos juntos para Matozinhos, no ônibus das 18 horas, como Betinho e Maria Goretti, dois amigos e colegas, que haviam se encontrado “por acaso” na rodoviária.


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