44- O ANO DA PREDIÇÃO
O ano de 1970 me reservaria uma nova situação. Não que
fosse inesperada, mas quando não se quer que uma coisa aconteça, a gente
prefere pensar que ela não é possível. Vã ilusão. Aconteceu. No meio do ano,
depois das férias de julho, Maria Goretti apareceu com um namorado. Era
inevitável; era a ordem natural das coisas. Eu não tinha por que questionar.
Maria Goretti, enquanto Maria Goretti, era uma pessoa normal. Egoisticamente,
temi, por causa daquilo, que tivesse chegando o tempo de Chiara se despedir.
Para meu alívio, descobri que era cedo. Não posso nem dizer que tenha havido
uma diminuição de nossos encontros. O namorado dela era de Sete Lagoas, e só
vinha a Matozinhos nos finais de semana. E sábado e domingo eram mesmo os dias
em que eu menos falava com Chiara. Portanto, o fato não me afetou. Apesar do
medo inicial.
Durante todo aquele ano, não me havia encontrado
nenhuma vez com Maria Goretti ou Chiara em Belo Horizonte. Nossos encontros
davam-se somente em Matozinhos. Nem os nossos horários de ônibus, de manhã,
para as aulas, e nem mesmo os retornos para casa coincidiam. Por causa disso,
surpreendi-me quando, logo no comecinho de agosto, numa segunda-feira,
encontrei um bilhete no meu armário da Escola de Belas Artes.
“Preciso falar com você. Venha à Savassi. Encontre-se
comigo, hoje às duas, na frente do Cine Pathé”. Sem assinatura, mas a letra era
inconfundível. Perguntei a alguns colegas quem tinha recebido o bilhete. Márcia,
uma colega, fez-me a descrição de uma moça que passara ali enquanto eu estava
no laboratório fotográfico. A descrição confirmou ser ela. Torci, então, para
que a manhã passasse logo.
Vinte pras duas cheguei ao local. Muito mais cedo do
que o combinado. Por mais que eu estivesse acostumado, encontrar-me com Chiara
ainda me dava uma certa ansiedade. Às duas em ponto ela chegou. Deu-me dois
beijos, e eu adorei ter de novo aquele gesto carinhoso. Ajudei-a a carregar
seus livros, e resolvemos ir a uma lanchonete na Rua Sergipe, quase esquina com
Tomé de Souza. Pedimos um suco, e reparei como ela estava bonita; não Maria
Goretti, mas Chiara. Era incrível a transformação que acontecia naquela mulher,
quando Chiara chegava: charme, sensualidade, classe, voz rouca, luz nos olhos,
sorriso exuberante. Tudo isso cercado pela aura do suave perfume mágico de
gardênia. Ela falou primeiro, pegando minha mão num afago carinhoso:
- Tava com saudades de você!
Ficou alguns segundos me olhando e dando-me, também, a
chance de olhá-la. Havia vezes em que não precisávamos nos falar. Bastava-nos
estar juntos.
- Vê só... que idéia genial que eu tive! - ela retomou
a conversa.- Aqui em Belo Horizonte, podemos nos encontrar muitas vezes, o
tanto de vezes que quisermos, que ninguém nos reconhecerá. E se alguém de
Matozinhos, por um acaso, vir a gente juntos, estará vendo Beto e Maria
Goretti. Não há nada de mais nisso!
Concordei feliz.
- Temos ainda um bom tempo juntos - disse-me.
Fiz um ar de indagação, não entendendo o quê, de fato,
ela queria dizer.
- Hoje eu já posso te dizer desse tempo que ainda
vamos ter, nós dois. Pelo menos mais uns
oito anos. - emendou.
Quis saber por que e ela me disse que tinha que ser
assim.
- Assim está determinado. Você terá ainda, num futuro
próximo, uma grande mudança na sua vida. Você pode mesmo, e isso é quase certo,
mudar-se de estado. Achei estranho, mas acostumara-me a não duvidar dela.
Pensei nas armadilhas do destino e fiquei imaginando para onde é que eu poderia
ir, e que determinação era essa, além de tentar calcular mentalmente em quais aventuras
eu ainda poderia me meter. Mesmo assim, tentei argumentar:
- Não quero ir para lugar nenhum. Não quero mudar de
estado.
- Senta aqui pertinho de mim...- ela pediu.
Eu, que estava em sua frente, sentei-me ao seu lado.
Abracei-a, dei-lhe um beijo no rosto, e ela fez uma expressão triste.
- Primeiro quero te dizer uma coisa - ela falou
emocionada.- quando isso acontecer, eu já terei ido embora. Eu serei uma
lembrança boa para você e irei feliz sabendo que te deixo bem. Obrigado - ela
continuou - por ser assim meu amigo, compreender-me tanto e gostar assim de
mim. Haverá o momento, não aqui deste modo que conhecemos, que a gente se
encontrará de novo, e aí será bastante possível que nós nunca mais nos
separemos. Obrigado por ser tão compreensivo e não me pedir mais do que eu
posso dar agora. Só quero dizer pra você ficar tranqüilo e se preparar para
essa nossa separação daqui a uns anos. Você não deve sofrer. Você vai sentir
saudades, mas será uma saudade gostosa. Você terá um novo caminho depois disso,
uma família para cuidar, novos projetos para cumprir.
Quis saber mais, curioso, da mudança que ela previa
para mim e ela me disse que talvez fosse um estado do Sul. Seria - isso era
certo -, minha afirmação profissional, minha definição afetiva e uma fase de
muita segurança para mim.
Não duvidei porque sabia que não adiantava.
- E tenho mais uma coisa a dizer. Você vai arranjar
trabalho, um bom trabalho aqui em Belo Horizonte primeiro. Só que o Sul espera
você. Isso está escrito. Posso ver você e sua família, seu trabalho e seus
novos amigos. Não adiantaria, se fosse o caso, e eu sei que você não fará isso,
lutar e dizer que não. Está escrito no seu destino.
Tentei ainda argumentar, falar alguma coisa...
- Mais, não posso dizer. – ela falou.
Pediu-me com um sorriso lindo que eu deixasse de ser
curioso e propôs que pedíssemos outro suco. Comentou sobre Maria Goretti;
estava feliz pelo fato de a amiga ter arranjado um namorado legal e sentiu que
ela também teria um futuro feliz, mas previa que não seria com esse namorado.
Comentou ainda que era enorme a gratidão que sentia por Maria Goretti. Ficava
feliz porque a sabia, também, muito protegida. Afirmou ainda que, aos poucos,
eu e ela ficaríamos um pouco mais amigos.
- Tantas coisas estranhas nos acontecem - eu disse – e
fico sempre tentado a exigir de você uma resposta que talvez você não possa me
dar. Com todos esses anos, por mais que na maior parte do tempo eu evite
questionar ou pensar muito, um momento como esse, que sinto, é de revelações,
me força a perguntar, falar de minhas curiosidades. Porque é tudo assim tão
diferente? Porque meus sonhos são tão reveladores? Porque o mesmo cenário, a
mesma impressão de tempo? Porque?
Eu a sentia triste cada vez que eu a inquiria desse
modo, sentia que ela suspirava como se buscasse forças para dizer que me
negaria respostas, ou então, eu sabia: suas respostas eram incompletas,
tangenciavam minhas dúvidas, mas não me prestavam esclarecimentos.
- Eu sei que você quer saber muita coisa e sei também
que eu nunca te digo. Confie em mim, é só o que peço.
Chiara tomou a minha mão e abrigou-a entre as suas,
com carinho. Beijou-me o rosto e pediu que eu a olhasse. Com seus olhos
extremamente profundos, como se me desvendassem a alma, ela repetiu:
- Confie em mim. Não deixarei, nunca, que nada de ruim
te aconteça. Tem coisas que é melhor você não saber. Aquela resposta me fez
entender que nem sempre eu poderia ter minhas dúvidas esclarecidas.
Naquela tarde, ela me fez ainda lhe prometer uma
coisa: nunca me envolver diretamente em conflitos políticos. Sabia que eu
ajudava uns amigos que sofriam perseguições do Regime Militar e pedia-me que
tivesse cuidado. Disse que apreciava a maneira despojada como eu e outras
pessoas nos entregávamos àquele tipo de ajuda, mas temia, por mim e pelos meus
amigos, que nós nos entregássemos mais àquela luta do que podíamos. Via-se,
ali, que o controle que ela tinha do meu futuro e de minhas ações, era parcial
e relativo. Havia, em minhas atitudes, a ação do livre arbítrio. Eu deveria ser
responsável pelos meus atos.
Chiara parecia saber que muita coisa ainda me
aconteceria. Algo, no entanto, dizia-me que ela estava tranqüila quanto ao meu
futuro. Isso me fazia supor que eu não corria perigos. Deveria, é claro, manter
a serenidade e conservar o bom senso.
Como ela falava do meu futuro com tanta segurança,
arrisquei uma afirmação:
- Pelo visto, não vou para o exterior fazer os cursos
que eu quero?
- Não, você não vai.- respondeu – Mas você vai ajudar
outras pessoas a ir. Você poderá ir, sim, a passeio, bem mais tarde, daqui a
alguns anos. Nada por agora.
Abro aqui parênteses nesse relato, para confirmar que
ela tinha razão. Não fui, estudar como eu pretendia. Ajudei um pouco Cristina e
Maria Célia, duas amigas, anos depois, em 1976, com aulas de Modelo Vivo,
preparando-as para uma escola de arte na França.
E tivemos um resto de tarde agradabilíssimo. Tão bom
que não vimos o tempo passar. Acertamos, ali, que pelo menos uma vez por semana
nos encontraríamos. Aquela possibilidade me deixava muito feliz
Voltamos juntos para Matozinhos, no ônibus das 18
horas, como Betinho e Maria Goretti, dois amigos e colegas, que haviam se
encontrado “por acaso” na rodoviária.
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