36- FORMATURA
DO GINÁSIO
Quando eu fiz quinze anos, o mundo e o Brasil, já não
me pareciam tão agradáveis. Assustava-me o futuro daquele regime imposto pelos
militares, embora eu, no início, sem maturidade alguma, até houvesse pensado
que aquilo seria o melhor para o país. Acompanhei atento o começo lento e
progressivo da repressão, disfarçado no agrado que era feito à classe média.
Comecei a me preocupar vendo o tipo de colaboração que essa classe média fazia,
dando “ouro para o bem do Brasil”, por exemplo, numa campanha nacional que
movimentou a sociedade. Vi, também, uma velha professora aposentada de minha
cidade doar o seu anel de formatura, algo que deveria ser muito importante para
ela. Nunca mais se soube desse dinheiro arrecadado. Pelo menos nunca vi ninguém
prestar contas do que foi a soma de todos os donativos.
Eu, nessa época, tive medo de assumir-me como pessoa
madura, embora quinze anos ainda fossem apenas quinze anos. Acontece que eu era
precoce. Sentia-me com vinte, vinte e tantos, às vezes, tamanha a seriedade das
coisas que eu pensava. Incomodava-me, desde essa época, as desigualdades
sociais, por exemplo. Alguns bolsões de pobreza em Matozinhos eram o que estava
ao alcance dos meus olhos. Via o trabalho que meu pai e seus amigos confrades
faziam na Sociedade São Vicente de Paula e os admirava.
Tive aos quinze anos minha fase mística. Comecei a
participar com ele, meu pai, como vicentino e cheguei a vislumbrar para mim um
futuro como religioso. Durou até dezembro daquele ano a minha fé. Aos poucos
abandonei a igreja, para tristeza de meus pais. Tive aquela fase de questionar
o luxo do Vaticano e outras riquezas da igreja. Tive também a fase de achar um
absurdo o celibato dos padres. Mas não deixei de acreditar em Deus. Acreditava
nele à minha maneira e parei de ver aquele cerimonial das missas e deveres
católicos como uma obrigação.
Refugiei-me na leitura. Li desesperadamente aquele
ano, como já contei, sozinho ou com Chiara. Tive também a fase de escrever,
sozinho ou em companhia dela. Tive ainda minha fase de me vestir de preto, usar
um chapéu que me dava um ar rebelde, não tomar sol e aprender a beber e fumar.
Precisava de um trabalho, dinheiro para o cigarro,
pelo menos. Naquele ano comecei a trabalhar no “Cachorro-Quente”, manhã e tarde
por causa dos estudos. Durante as férias trabalhava no turno da noite, que era
o horário que eu mais gostava.
Senti que precisava de uma namorada. Arranjei uma, A...
. Ela também era boa companhia. Eu é que talvez não tivesse sido uma boa
companhia para ela. Fui pouco cuidadoso, não fui gentil e fui, em muitos casos,
absurdamente machista. Não sinto saudades dessa fase. Sinceramente não. Não sei
como ela me suportou tanto tempo, com minha pouca sensibilidade da época. E é
engraçado, porque eu transpirava o peso de minha depressão: não sorria, falava
pouco e tinha constantemente um ar de enfado.
Sentia-me perseguido pelo mundo e pouco compreendido.
Não sei como as pessoas a quem eu atendia no bar interpretavam isso. Faltava-me
a gentileza de um sorriso tão necessária para aquele tipo de trabalho que eu
começara a fazer.
Naquele ano, o segundo semestre, ao contrário do
primeiro, não possibilitou muitos encontros entre mim e Chiara. Houve um
período, de março a junho (primeiro semestre do Ginásio), em que nos
encontrávamos para estudar, ler, escrever, ouvir música e conversar quase toda
a semana, conforme já relatei. No começo do segundo semestre, em agosto,
começou a haver uma retração em nossos encontros, e lá pelo meio de setembro,
separamo-nos praticamente por dois meses (até o fim de outubro). Em novembro
nos vimos quatro vezes, e em dezembro, duas, uma delas em nosso baile de
formatura e outra, na véspera de Natal.
Em nossa festa de formatura tivemos a missa na igreja
e depois a entrega de diplomas no Cine Municipal. Todos os pais estourando de
orgulho, inclusive os meus, principalmente minha mãe. Quase que a decepciono,
dizendo que não queria ir e relutando muito para usar terno e gravata. Salvou a
minha noite Chiara, por préstimo de Maria Goretti, dando-me um recado rápido na
igreja antes da missa:
- Não faça sua mãe ficar triste. Dê a ela essa
alegria. - E emendou com um pedido - Quero dançar com você hoje.
Pediu que eu a olhasse nos olhos, segurando-me pelos
ombros.
- Isso não é um pedido. É uma ordem. Chega de ser tão
bobo e vê se conserta sua vida. Seus amigos não merecem isso. Sua mãe, muito
menos.
Convenientemente eu havia rompido com A... quase um
mês antes. Estava me sentindo liberto e sem novos planos amorosos, embora
sentisse ainda o peso da depressão. Com esforço, dediquei-me mais aos amigos. E
voltei fanaticamente a ler e a escrever.
Foi nesse ano que comecei a ficar mais amigo de Aluízio, João Pezzini e
Tanius, que viriam a ser meus parceiros inseparáveis no Científico e meus
melhores amigos até hoje.
Aquele ano de 65 viria a ser também o ano em que eu
passaria a levar a sério quatro cabeludos de Liverpool que mudariam a minha
vida e de toda uma geração. Quem primeiro me falou deles, dizendo que tinha
certeza de que eu ia gostar muito, foi Maria Goretti, naquela que foi a sua
primeira manifestação de amizade e atitude de me fazer um agrado. E ela tinha
razão. Bastara-me ouvir com atenção os primeiros discos. Foi uma espécie de
contagiante paixão à primeira vista. Num instante, num curtíssimo período de
tempo, eu João, Tanius e Aluízio começamos a trocar discos e letras das músicas
que transcrevíamos com o nosso inglês limitado da época.
Naquela noite da formatura realizamos o baile
comemorativo na sede velha do Clube da Cominci, antigo prédio da Cooperativa,
no bairro da Estação.
No meio da noite, aproximei-me da mesa de Seu Alcides
e Dona Maria. Cumprimentei-os pela formatura da filha e tirei-a para dançar.
Dançamos umas três músicas. Chiara estava ali desde o começo e deu-me um sorriso
lindo. Alertou-me para o estado para que eu estava me encaminhando
descuidando-me da saúde. Disse-me que não queria aquilo. Pediu-me uma postura
mais positiva perante o mundo e que contivesse um pouco o cigarro e a bebida.
Ela não gostava de me ver assim.
Fiquei consternado, senti-me seguro de ter ali,
naquele momento importante de minha vida, a minha amiga mais querida; repensei
em segundos todas as bobagens que eu estava fazendo e decidi mudar. Aquele
finalzinho de 65 iria assistir a minha vida retornar ao normal. O próximo ano
seria melhor, ainda mais tendo Chiara por perto.
Tive vontade de beijá-la ali, mas sabia que não podia.
O conjunto musical tocou “I’m gettin’sentimental over you”, colei o meu rosto
ao dela e dançamos enquanto as luzes do clube diminuíam de intensidade, até a
penumbra.
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