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HISTORIANDO...
Houve momentos em que o tempo no qual eu e Chiara
ficávamos juntos, ela dividia com Maria Goretti. Via assim a chance de a última
me conhecer melhor, à medida que essa também aperfeiçoava a sua capacidade de
se dar a Chiara para que ela falasse comigo. E, conforme disse, como éramos
colegas do Ginásio, estar estudando com ela em casa, era como estar com
qualquer outro colega. Chiara me confessou um dia que gostaria imensamente de
que Maria Goretti se apaixonasse por mim, mesmo sabendo que isso não ia
acontecer. No seu ponto de vista, seria o ideal porque assim eu ficaria com uma
boa pessoa e, para mim mesmo, talvez se tornasse menos confusa aquela história
toda. Apesar de tudo, eu, nas poucas vezes em que pensei naquela possibilidade,
concluí que não daria certo. Para mim eram duas pessoas diferentes, embora eu
estivesse, gradativamente, ficando amigo de Maria Goretti, aprendendo a gostar
dela e sentir prazer em sua companhia.
Engraçada era a distribuição do tempo nesses
encontros. À medida que nos acertamos para que uma e outra estivessem comigo,
às vezes era Chiara quem batia à minha porta e no meio da tarde ia embora,
deixando Maria Goretti para conversar um pouco comigo. Em outras vezes quem
chegava era Maria Goretti, e Chiara vinha depois. Até houve vezes em que Maria
Goretti vinha, ficava o tempo todo, e Chiara não se comunicava. Houve vezes, e
no início isso era muito confuso para mim, que as duas se intercalavam,
trocando seguidamente de lugar. Parecia que as duas combinavam e faziam uma
espécie de jogo ou brincadeira comigo. A única marca distintiva era o perfume
que anunciava Chiara.
Mesmo colaborando com isso, Maria Goretti dizia,
também, às vezes se confundir. Dizia-me, por exemplo, que estranhava porque num
dado momento quando se dava a Chiara, estava num lugar e quando voltava a ser
Maria Goretti, estava em outro, o que confirmava que às vezes, sua entrega era
total. Um dia, Maria Goretti me disse:
- Essa coisa toda é muito confusa para mim, Beto
(também ela passou a me chamar de Beto). Sei que a relação sua com essa moça
(ela poucas vezes se referiu a Chiara pelo nome) que me procura é muito
especial e me sinto útil por ser intermediária, embora às vezes isso tudo me
confunda a cabeça. Acho que se eu quisesse, poderia até evitar que ela viesse e
me usasse. Mantenho isso, por saber que estou fazendo uma coisa boa. Sua
discrição também ajuda muito e me deixa mais tranqüila.
Agradeci-lhe, disse-lhe que podia continuar confiando
em mim e que não se preocupasse. Tinha certeza de que aquilo nunca lhe faria
mal.
Discretíssima, Maria Goretti nunca se interessou em
saber detalhes daquela relação, nem me pediu qualquer informação ou mais
detalhes sobre a pessoa que se comunicava comigo, embora, com o desenvolvimento
de nossos encontros, passasse mais e mais a guardar um pouco mais da lembrança
de tudo que acontecia. Maria Goretti, como pouquíssimas pessoas que eu conheci,
tinha a discrição como sua principal virtude, e isso demonstrava também que ela
era uma pessoa de caráter e extremamente madura. Outra pessoa, com certeza,
poderia ter medo de se envolver, teria a curiosidade que às vezes é indiscreta
e a “não-entrega” total, pensando até em interferir.
Maria Goretti confessou-me, também, que nunca algo
parecido com esse tipo de contato havia acontecido em sua vida. Sentia outros
tipos de manifestação, premonições ou coisas parecidas, mas de pouca
importância, dizia. Sentia-se, de certo
modo especial por ter essa capacidade e se esforçava para que seus pais nunca
percebessem. Nesse instante confessou-me uma coisa que eu não sabia e, com
certeza, ninguém ou talvez pouquíssimas pessoas de Matozinhos soubessem: Seu
Alcides e Dona Maria não eram seus pais verdadeiros. Ela fora adotada ainda
bebê e nascera no interior do Paraná, numa colônia armênia. Sabia isso, porque
sua mãe adotiva lhe contara desde pequena. Um dia, eles, seus pais adotivos,
viajaram para o Paraná e trouxeram-na, recém nascida para Matozinhos. Agradecia
muito aos dois, nunca teve nenhum tipo de ligação com sua mãe biológica e, de
coração, ela era filha de Seu Alcides e Dona Maria. Considerava-se mineira e
matozinhense.
Não sei se isso explica a espécie de poder que ela
possuía, de ser algo assim como um veículo de comunicação. Nunca nenhum de nós
falou em espiritismo ou em algo parecido. Mantivemos sempre a tentativa de
fazer aquilo tudo parecer natural, sem nos aprofundarmos, sem querer saber mais
do que talvez devêssemos e, como eu disse no início deste livro, tanto com
Chiara quanto com Maria Goretti, eu tinha a mesma postura: aquilo que acontecia
era diferente, anormal para os padrões de todo mundo, mas não nos fazia nenhum
tipo de mal. Se causava algum tipo de interferência em nossas vidas, era apenas
em alguns momentos específicos e nunca nos prejudicou. Eu e Maria Goretti
passávamos para o resto da população de nossa cidade e até para os nossos pais,
a idéia de sermos como os outros jovens, com a vida normal de estudos,
festinhas e amigos. Ninguém, ninguém mesmo, a não ser nós dois, sabia do que
acontecia. Era um assunto que dizia respeito apenas a nós dois, ou melhor, a
nós três.
E é importante dizer que ser o canal de minha
comunicação com Chiara foi talvez a única anormalidade constante na vida de
Maria Goretti, pelo menos dentro do que se pode chamar de manifestações
repetidas, porque outras formas esporádicas aconteceram, e eu mesmo
testemunhei, algumas vezes, isso acontecer.
Quando chegou o dia de eu e Chiara terminarmos nossas
comunicações, ao que parece, nunca mais, com outra ou outras pessoas, Maria
Goretti compartilhou esse seu poder. Parece ter encerrado ali aquela sua
habilidade, como se o seu principal papel fosse ser a ponte de comunicação para
favorecer o contato entre mim e Chiara.
Maria Goretti sabe que isso tudo não interferiu como
prejuízo em sua vida. O máximo que aconteceu foi ela se disponibilizar para
nossos encontros quando assim era necessário.
E mesmo que tenha havido um grande progresso em nossas
relações, foi pena nós nunca termos sido amigos com a intensidade que Chiara
desejou. Nunca, eu e ela questionamos isso, até porque sabemos, amizade passa
antes por afinidades que talvez nós dois não tivéssemos e nem aconteceu da
gente descobrir. Nem eu sou hoje o melhor amigo dela, nem ela é hoje, a minha
melhor amiga. Não aconteceu, simplesmente. Nunca nos cobramos, embora
tivéssemos passado bons momentos juntos de quase intimidade e até mesmo beijos,
imprudentes, houvesse acontecido entre nós.
Houve mesmo outros interesses para cada de um nós no
momento em que Chiara nos deixou. Tratamo-nos hoje com cordialidade e educação
e a cada encontro que temos, tocamos cada vez menos nesse assunto. Talvez tenha
sido bom que fosse assim. E é engraçado, encontrar com ela, por exemplo, num
supermercado ou numa praça de Matozinhos, quando para lá eu vou. Quem nos vê
juntos, numa rápida conversa de dois colegas que se reencontram, não imagina o
que passamos juntos e como estivemos tão perto um do outro, durante todos
aqueles anos. E o mais engraçado é que, raramente, em nossas conversas,
qualquer um de nós, rememora aqueles tempos.
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