45- CONHECENDO
O MAR
Conheci o mar com vinte anos. Fiquei estupefato. Meus
novos amigos de Belo Horizonte preocuparam-se com o fato, tão logo eu lhes
contei que não conhecia. Estávamos, nesse dia, numa aula com o professor Lodi.
O ponto de partida do assunto foi eu comentar, com minha inexperiência
matozinhense, que não conhecia metade dos nomes de artistas que havia passado a
conhecer na Universidade.
- Vamos lá interiorano - brincou Selma Michalik, uma
colega muito bonita que eu tinha no início do curso – conta mais aí, do que
você não conhece.
Assustaram-se quando eu disse que não conhecia o mar.
Assustaram-se também quando eu contei que conhecera uma escada rolante apenas
no ano anterior, que tinha medo de entrar sozinho em elevadores e que nunca
tinha tomado um milk-shake.
Respeitaram-me quando eu contei dos brinquedos que eu tive e que eles, rapazes
e moças da cidade grande, nunca pensaram ter. É a lei da compensação. Eu sabia
que havia tido experiências insuperáveis: namorar - menino ainda – M... e E...;
comer doce de talo de mamoneiro; beber refresco de jabuticaba feito na hora ou
chupar jabuticaba no pé, comer arroz com pequi... E nem precisei contar a maior
de todas: minha vida com Chiara.
A notícia de que eu não conhecia o mar correu. Marília
contou para Sandra, que contou para Júlio Espíndola, que contou para Erenice
Picinim (ele do quarto ano e ela do segundo). Éramos uma coisa só na Escola de
Belas Artes. Não havia distinção de turmas. Éramos todos amigos porque a escola
funcionava num prédio pequeno e acolhedor. Todos freqüentavam as salas de todos
e, nos primeiros dias, por exemplo, eu já conhecia todo mundo, sabia todos os
nomes.
Erenice me convidou, então, no recesso escolar do
primeiro semestre, a ir conhecer o mar. Sua família tinha uma casa numa prainha
pequena chamada Muriqui, no Espírito Santo. Fomos eu, ela e Júlio. Eu, com
minha ansiedade, recebia um grande presente dos dois. Conhecer o mar era um
antigo sonho desde a infância em Matozinhos, em que eu, criativo, inventava
histórias de seres do mar, piratas e navios.
Chegamos numa sexta ao anoitecer. Eu teria que esperar
a manhã seguinte para minha experiência. Naquela noite fui vê-lo de longe. Com
temor e respeito. Chovia.
Mesmo não sendo a praia iluminada, pude senti-lo com
sua imensidão de ondas quebrando espumosas na areia. Senti o incomparável
cheiro de maresia pela primeira vez. Jantamos à beira-mar, num restaurante
simples e acolhedor: um risoto de mexilhões.
Naquela noite custou-me pegar no sono. Queria que
Chiara estivesse ali no dia seguinte, acompanhando minha primeira experiência
de entrar no mar. Queria que ela estivesse sempre participando de tudo que me
era importante.
Da casa de Erenice podia-se ouvir o ruído noturno do
mar. Lembrei-me de histórias de castelos assentados em penhascos e com as ondas
violentas acossando as pedras. Lembrei-me do “Conde de Arimatéia”, um
personagem de histórias em quadrinhos que eu fazia em criança, nas minhas
primeiras tentativas, incentivado por Chiara. Ela ditava-me em sonhos o que eu
devia desenhar. O nome do personagem era sugestão dela. Ele morava num desses
castelos à beira de penhascos. Suas histórias aconteciam sempre à noite.
A manhã seguinte, a despeito da chuva da noite, estava
luminosa e radiante. Tomamos café e fomos para a praia. Não tenho palavras para
expressar o que é a primeira sensação de entrar devagar no mar, receber no
corpo as primeiras ondas e ter no horizonte aquela linha que separa água e céu.
Depois, à medida que se avança mais, as ondas maiores, o medo passando a uma
coragem tímida, e a coragem maior depois de tentar um mergulho, furar a onda e
sentir aquele aguaceiro esparramando-se em nosso corpo como se fizéssemos
naturalmente parte daquilo, daquela bênção da natureza. O primeiro contato é
mágico.
Foi um dos dias mais felizes de minha vida! Devo a
Erenice e a Júlio o prazer desse dia. À tarde, eu voltei ao mar. Estava mais
seguro. Arrisquei mais. Mesmo não sabendo nadar, eu ia até onde dava pé.
Ficamos três dias prazerosos, mas que passaram rápido.
Na volta, em Matozinhos, busquei a alegria de contar
para Chiara. Estávamos ainda em recesso. Ela se encontrava na cidade. Ela
parecia saber que eu queria contar. Apareceu lá em casa. Conversamos muito, e
eu pude falar de minha alegria. Ela, feliz, disse-me que sabia que aquela seria
uma das maiores emoções de minha vida quando acontecesse. Aconteceu, e haveria
muitas outras. Disse-me, ainda, que no futuro eu iria morar numa cidade à
beira-mar. Como é que ela podia saber? Pergunto-me sempre.
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