31- SEU
ANTONIO AMORIM
Uma noite, um pouco antes das aulas, Maria Goretti
chegou e pediu-me que a esperasse no fim do corredor, pois precisava me dizer
uma coisa. Entrou, guardou os cadernos como sempre fazia e caminhou em minha
direção, trazendo consigo o perfume bom, o cenho grave e mordendo levemente o
lábio inferior. Era Chiara quem estava ali e vinha falar comigo. Para termos
privacidade, desci a escada que dava para o pátio e sentei-me no primeiro
degrau. Ela sentou-se ao meu lado, esperou que Olerina, uma colega, passasse
por nós, e então me falou:
- Sabe o Seu Antônio, aquele que uma vez nos viu
quando éramos crianças? Hoje, há pouco, meia-hora mais ou menos, ele acabou de
encerrar o seu ciclo aqui na terra.
Lembrei-me então de Seu Antonio, Seu Antônio Amorim,
funileiro e afiador de facas, que nos meus tempos de menino prestava serviços
aos moradores da Usina. Era um senhor negro, altivo, usava um chapéu de palha e
sandálias de tiras de couro com solado de pneu. Passava de casa em casa, perguntava
se havia facas ou outros objetos para se amolar ou qualquer coisa para
consertar: colocava asa em canecos, remendava objetos de lata furados,
restaurava guarda-chuvas, consertava calhas dos telhados; um faz-tudo, enfim. E
ele, lembrava-me ao ouvir Chiara, havia sido a única pessoa que, como eu, a
vira quando criança, nos tempos em que ela brincava comigo em minha casa. Tomei
consciência ali naquele momento, de que era também a primeira vez que Chiara se
referia à nossa situação de infância. Não comentei ali essa lembrança porque a
morte de Seu Antônio era mais importante naquele momento.
Seu Antônio a viu, uma vez, quando minha mãe chamou-o
e lhe entregou algumas facas para afiar. Ele era calmo, extremamente meticuloso
e pediu para instalar seus objetos, a roda de afiar e o esmeril, à sombra do
abacateiro. Pediu à minha mãe uma vasilha com água e antes de iniciar a afiação
fez com calma um cigarro de palha. Eu o olhava naquela cerimônia de esticar a
palha com o lado oposto do canivete, cortar o pedaço que precisava e,
pacientemente, cortar o fumo de rolo, segurando com a mão em concha, o tabaco
que iria usar no cigarro. Eu o olhava, e ele me olhava, silencioso e pensativo,
como se enxergasse através de minha pessoa. Apanhou numa sacola, um isqueiro de
metal, sem tirar os olhos de mim. Acendeu o cigarro, deu uma longa baforada e
com a unha controlou a brasa do cigarro. Tudo isso sem parar de me olhar.
Fiquei curioso para saber por que me olhava assim, como se enxergasse alguma
coisa a mais do que eu, ali naquele momento. De repente, olhou-me de um modo
penetrante e falou baixinho, como se contasse um segredo:
- Essa menina bonita aí é muito sua amiga, né?
Eu, que não havia visto Chiara ainda naquele dia,
olhei para trás e assustei-me de vê-la, logo ali, atrás de mim, bem pertinho,
sorrindo para nós, como se acabasse de chegar, trazendo consigo seu perfume de
gardênia. Ele continuou:
- Ninguém precisa saber que ela vem aqui brincar com
você. Não tenha medo dela porque ela não vai te fazer mal nenhum. Ela é sua
amiga e seu anjinho da guarda”. Eu posso ver a menina como você vê, mas ninguém
mais pode.
Dito isso, sorriu, piscou-me um olho, abriu um sorriso
generoso e começou a afiar uma faca, assobiando uma canção. Chiara, em seguida,
tomou a minha mão e me levou para brincar no quarto, fazendo um pequeno sinal
de adeus para Seu Antônio. Olhei para trás e vi Seu Antonio Amorim beijando os
dedos da mão em cruz, como se dissesse que ia guardar o segredo. Ainda mandou
um beijo para Chiara, definindo ali, uma relação de confiança plena.
A partir daquele episódio com Seu Antônio,
experimentei uma nova segurança na minha relação com Chiara. Descobri que
realmente quase ninguém a via. Fiquei tranqüilo por saber que Seu Antônio podia
enxergá-la, e isso me deu uma certa paz. Sabia que ele era um bom homem, pessoa
de extrema confiança e do qual todos gostavam. Era inclusive amigo de meu pai
e, muitas vezes, passava em minha casa, para um dedo de prosa com o meu velho.
Lembro que era seu costume referir-se ao meu pai como o “homem da boa
companhia”: “Aí, Seu Zé, lá vai o senhor bem acompanhado como sempre...”.
Parecia dizer com aquilo que via algo, ou alguém, sempre do lado de meu
pai. Meu pai ria porque, católico
fervoroso que era, dizia ser essa companhia, o “anjo da guarda” do plantão do
dia. Na ótica espírita de Seu Antônio, não deixava de ser também. Já o ouvira,
muitas vezes, falar com meu pai sobre “espíritos” que andavam junto conosco
para nos proteger se merecêssemos essa boa companhia. Falara, também, de
espíritos maus que andavam com as pessoas para prejudicá-las. Às vezes entravam
no corpo de uma pessoa usando-a para fazer coisas más. Meu pai não acreditava
em espíritos dessa maneira. Respeitava, mas nunca acreditou na religião
espírita.
Pelo fato de Seu Antônio ser assim, bom e correto,
senti segurança e nunca o imaginei contando, por exemplo, de Chiara para o meu
pai. Tinha certeza absoluta de que ele nunca faria isso. Ele acabou tornando-se
uma espécie de cúmplice daqueles nossos encontros. Pelo menos mais umas três ou
quatro vezes nos viu juntos; nessas ocasiões nos cumprimentava (“Oi, Betinho.
Oi, menina”) e seguia seu caminho assobiando “Saudoso realejo” que era sua
canção favorita.
Um dia, pouco tempo depois de Chiara ter desaparecido,
ele passou ali em casa e eu o atendi á porta. Pediu-me com sua tradicional
boa-educação, o favor de um copo d’água. Senti que ele me trazia notícias e
fiquei ansioso. Minha mãe apareceu, cumprimentou-o e ficou ali conversando um
pouco com ele, encomendando-lhe um modelo de regador para suas plantas. Ele,
enquanto minha mãe estava ali, não disse nada. Esperou que ela saísse, pedindo
licença para se sentar ali, na porta, na sombra de nosso alpendre. Quando minha
mãe entrou, ele me disse:
- A menina teve de ir embora por uns tempos, mas daqui
a uns anos vocês vão se encontrar de novo. Não se preocupe que ela continua
protegendo você. Não fique triste com ela... não fique triste com ela. -
repetiu.
Aquilo me tranqüilizou e fez com que eu pudesse
continuar a minha vida sem estar preso à ansiedade de que ela pudesse voltar a
qualquer momento. Aquela determinação de que seria “no futuro”, pelo menos me
deu a certeza e a segurança de que um dia ela voltaria. Esperei tão
pacientemente quanto foi possível esperar. Mas eu era muito jovem, para
entender de forma natural aquilo tudo.
E agora ali, naquele fim de tarde, Chiara me falava da
morte de nosso amigo. Lembrei que houve mesmo um momento em que eu o esqueci, e
tive remorsos. Chiara me tranqüilizou dizendo que ele era uma pessoa tão boa
que teria sabido compreender. Com certeza, segundo ela, ele estaria amparado em
sua passagem para a outra vida. Ele vivera muito e fora feliz nos seus oitenta
e dois anos.
No dia seguinte, acompanhei meu pai, que era seu
amigo, nas cerimônias do enterro. Agradeci em silêncio por tê-lo conhecido,
pela segurança que ele havia me passado e pedi que Deus protegesse sua alma.
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