domingo, 10 de fevereiro de 2013

31- Seu Antonio Amorim





31- SEU ANTONIO AMORIM


 Uma noite, um pouco antes das aulas, Maria Goretti chegou e pediu-me que a esperasse no fim do corredor, pois precisava me dizer uma coisa. Entrou, guardou os cadernos como sempre fazia e caminhou em minha direção, trazendo consigo o perfume bom, o cenho grave e mordendo levemente o lábio inferior. Era Chiara quem estava ali e vinha falar comigo. Para termos privacidade, desci a escada que dava para o pátio e sentei-me no primeiro degrau. Ela sentou-se ao meu lado, esperou que Olerina, uma colega, passasse por nós, e então me falou:
- Sabe o Seu Antônio, aquele que uma vez nos viu quando éramos crianças? Hoje, há pouco, meia-hora mais ou menos, ele acabou de encerrar o seu ciclo aqui na terra.
Lembrei-me então de Seu Antonio, Seu Antônio Amorim, funileiro e afiador de facas, que nos meus tempos de menino prestava serviços aos moradores da Usina. Era um senhor negro, altivo, usava um chapéu de palha e sandálias de tiras de couro com solado de pneu. Passava de casa em casa, perguntava se havia facas ou outros objetos para se amolar ou qualquer coisa para consertar: colocava asa em canecos, remendava objetos de lata furados, restaurava guarda-chuvas, consertava calhas dos telhados; um faz-tudo, enfim. E ele, lembrava-me ao ouvir Chiara, havia sido a única pessoa que, como eu, a vira quando criança, nos tempos em que ela brincava comigo em minha casa. Tomei consciência ali naquele momento, de que era também a primeira vez que Chiara se referia à nossa situação de infância. Não comentei ali essa lembrança porque a morte de Seu Antônio era mais importante naquele momento.
Seu Antônio a viu, uma vez, quando minha mãe chamou-o e lhe entregou algumas facas para afiar. Ele era calmo, extremamente meticuloso e pediu para instalar seus objetos, a roda de afiar e o esmeril, à sombra do abacateiro. Pediu à minha mãe uma vasilha com água e antes de iniciar a afiação fez com calma um cigarro de palha. Eu o olhava naquela cerimônia de esticar a palha com o lado oposto do canivete, cortar o pedaço que precisava e, pacientemente, cortar o fumo de rolo, segurando com a mão em concha, o tabaco que iria usar no cigarro. Eu o olhava, e ele me olhava, silencioso e pensativo, como se enxergasse através de minha pessoa. Apanhou numa sacola, um isqueiro de metal, sem tirar os olhos de mim. Acendeu o cigarro, deu uma longa baforada e com a unha controlou a brasa do cigarro. Tudo isso sem parar de me olhar. Fiquei curioso para saber por que me olhava assim, como se enxergasse alguma coisa a mais do que eu, ali naquele momento. De repente, olhou-me de um modo penetrante e falou baixinho, como se contasse um segredo:
- Essa menina bonita aí é muito sua amiga, né?
Eu, que não havia visto Chiara ainda naquele dia, olhei para trás e assustei-me de vê-la, logo ali, atrás de mim, bem pertinho, sorrindo para nós, como se acabasse de chegar, trazendo consigo seu perfume de gardênia. Ele continuou:
- Ninguém precisa saber que ela vem aqui brincar com você. Não tenha medo dela porque ela não vai te fazer mal nenhum. Ela é sua amiga e seu anjinho da guarda”. Eu posso ver a menina como você vê, mas ninguém mais pode.
Dito isso, sorriu, piscou-me um olho, abriu um sorriso generoso e começou a afiar uma faca, assobiando uma canção. Chiara, em seguida, tomou a minha mão e me levou para brincar no quarto, fazendo um pequeno sinal de adeus para Seu Antônio. Olhei para trás e vi Seu Antonio Amorim beijando os dedos da mão em cruz, como se dissesse que ia guardar o segredo. Ainda mandou um beijo para Chiara, definindo ali, uma relação de confiança plena.
A partir daquele episódio com Seu Antônio, experimentei uma nova segurança na minha relação com Chiara. Descobri que realmente quase ninguém a via. Fiquei tranqüilo por saber que Seu Antônio podia enxergá-la, e isso me deu uma certa paz. Sabia que ele era um bom homem, pessoa de extrema confiança e do qual todos gostavam. Era inclusive amigo de meu pai e, muitas vezes, passava em minha casa, para um dedo de prosa com o meu velho. Lembro que era seu costume referir-se ao meu pai como o “homem da boa companhia”: “Aí, Seu Zé, lá vai o senhor bem acompanhado como sempre...”. Parecia dizer com aquilo que via algo, ou alguém, sempre do lado de meu pai.  Meu pai ria porque, católico fervoroso que era, dizia ser essa companhia, o “anjo da guarda” do plantão do dia. Na ótica espírita de Seu Antônio, não deixava de ser também. Já o ouvira, muitas vezes, falar com meu pai sobre “espíritos” que andavam junto conosco para nos proteger se merecêssemos essa boa companhia. Falara, também, de espíritos maus que andavam com as pessoas para prejudicá-las. Às vezes entravam no corpo de uma pessoa usando-a para fazer coisas más. Meu pai não acreditava em espíritos dessa maneira. Respeitava, mas nunca acreditou na religião espírita.
Pelo fato de Seu Antônio ser assim, bom e correto, senti segurança e nunca o imaginei contando, por exemplo, de Chiara para o meu pai. Tinha certeza absoluta de que ele nunca faria isso. Ele acabou tornando-se uma espécie de cúmplice daqueles nossos encontros. Pelo menos mais umas três ou quatro vezes nos viu juntos; nessas ocasiões nos cumprimentava (“Oi, Betinho. Oi, menina”) e seguia seu caminho assobiando “Saudoso realejo” que era sua canção favorita.
Um dia, pouco tempo depois de Chiara ter desaparecido, ele passou ali em casa e eu o atendi á porta. Pediu-me com sua tradicional boa-educação, o favor de um copo d’água. Senti que ele me trazia notícias e fiquei ansioso. Minha mãe apareceu, cumprimentou-o e ficou ali conversando um pouco com ele, encomendando-lhe um modelo de regador para suas plantas. Ele, enquanto minha mãe estava ali, não disse nada. Esperou que ela saísse, pedindo licença para se sentar ali, na porta, na sombra de nosso alpendre. Quando minha mãe entrou, ele me disse:
- A menina teve de ir embora por uns tempos, mas daqui a uns anos vocês vão se encontrar de novo. Não se preocupe que ela continua protegendo você. Não fique triste com ela... não fique triste com ela. - repetiu.
Aquilo me tranqüilizou e fez com que eu pudesse continuar a minha vida sem estar preso à ansiedade de que ela pudesse voltar a qualquer momento. Aquela determinação de que seria “no futuro”, pelo menos me deu a certeza e a segurança de que um dia ela voltaria. Esperei tão pacientemente quanto foi possível esperar. Mas eu era muito jovem, para entender de forma natural aquilo tudo.

E agora ali, naquele fim de tarde, Chiara me falava da morte de nosso amigo. Lembrei que houve mesmo um momento em que eu o esqueci, e tive remorsos. Chiara me tranqüilizou dizendo que ele era uma pessoa tão boa que teria sabido compreender. Com certeza, segundo ela, ele estaria amparado em sua passagem para a outra vida. Ele vivera muito e fora feliz nos seus oitenta e dois anos.
No dia seguinte, acompanhei meu pai, que era seu amigo, nas cerimônias do enterro. Agradeci em silêncio por tê-lo conhecido, pela segurança que ele havia me passado e pedi que Deus protegesse sua alma.

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