terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

47- Apresentando Carmela



47- APRESENTANDO CARMELA









A década de 70 confirmava no seu início, o endurecimento do Regime Militar sob o governo do General Médici. Os militares com seu aparato poderoso começaram a ganhar a luta contra a guerrilha, sufocando-a aos poucos, destruindo sua resistência através de violentos métodos de tortura e até mesmo através do aniquilamento puro e simples. Muito pouco se falava, na imprensa em geral, de que algum grupo ainda resistia. O governo, definitivamente, ganhara a batalha.

Muitos desses combatentes urbanos passaram por um treinamento de guerrilha em Cuba e pretendiam, de início, voltar ao Brasil e reorientar os caminhos da resistência, esperançosos ainda de reverter a situação. Alguns desses combatentes eram conhecidos meus e, sem me envolver diretamente, eu os ajudava, buscando uma ou outra casa de confiança na qual eles pudessem se esconder de forma provisória ou ajudando-os na escuridão da noite a trocar de cidade, por exemplo. Outros, mesmo que não fossem conhecidos, também recebiam ajuda, desde que as organizações nos pedissem. Junto comigo, muitas pessoas fizeram parte dessa rede de apoio, ajudando a muitos, que inclusive retornavam ao Brasil num momento que era quase impossível tentar alguma forma de reação.

Carmela era uma dessas pessoas. Voltara de Cuba e reentrara secretamente no Brasil em agosto de 1972. Voltara mais por que sua mãe adoecera e estava em estado terminal, com um câncer que se disseminara pelo corpo. Infelizmente, Carmela não conseguiu, como queria, chegar em sua cidade (pelo risco de ser presa, naturalmente) e não pôde, portanto, rever sua mãe antes que ela morresse. Isso lhe doeu muito. Passou um tempo grande em estado de depressão, escondida num sítio de Nova Lima, longe de seu estado, São Paulo. Quando começou a se recuperar, amigos propuseram-lhe que ficasse em Belo Horizonte, onde não era conhecida e poderia reiniciar a sua vida. Ajudaram-na a alugar um pequeno apartamento num velho edifício da Praça Raul Soares e, através de um tio, recebia uma quantia em dinheiro, já que, com a morte da mãe, tornara-se a única herdeira da família. Esse dinheiro, uma boa quantia para época, permitia-lhe viver com muita dignidade, e até a dispensaria de buscar emprego caso assim optasse.

Seus companheiros de guerrilha foram compreensivos, concordando que ela se aposentasse da luta direta, porque sabiam-na de extrema confiança, além de ter sido, em tempo de guerrilha, participante dedicada e responsável por muitas missões de alto risco. Foi-lhe permitido tentar uma vida nova, embora fosse difícil, naqueles tempos tão vigiados, recomeçar algo. Fora isso, havia ainda as lembranças tristes: a perda da mãe e as recordações que a volta ao Brasil lhe traziam de Carlos Alberto, um namorado seu, também guerrilheiro, que tombara baleado em choque com a polícia, em São Paulo, três anos antes, em novembro de 69.



Fui contatado em janeiro de 73, com o pedido de que a ajudasse no seu processo de reinstalar uma vida nova. Carmela não era seu nome de batismo, nem o nome de guerrilheira. Era o nome que constava nos novos documentos que ela recebera e que, a princípio, garantiriam a sua volta à sociedade com segurança. Conheci-a, apresentado por um amigo da rede de ajuda, num bar chamado “Hi-Fi”, na Praça Raul Soares. Ela era uma mulher alta para os padrões brasileiros, tinha os cabelos curtinhos, usava óculos de grau e pareceu-me desajeitada na roupa feminina que vestia. Ela pareceu-me ansiosa, fumando muito, um cigarro depois do outro, e deixando escapar seu forte sotaque de Brotas (cidade do interior de São Paulo), através de sua voz muito grave. Seu sotaque de caipira paulista destoava totalmente do modo de falar na cidade de nascimento que constava em seus documentos falsos. Ali dizia que ela nascera em Taiobeiras, norte de Minas, cidade de forte influência baiana, inclusive no modo cantado de falar.

Com o tempo, à medida que nos víamos com mais freqüência, fomos ficando amigos, e eu pude senti-la recuperando a confiança e vencendo as perdas afetuosas que tivera. Incentivei-a a estudar de novo e ela pôde, então, entrar num cursinho pré-vestibular para tentar um curso de pedagogia no ano seguinte. Seu sonho de infância era ser professora, confessou-me emocionada. E ela conseguiria, com certeza, se o acaso não houvesse barrado no caminho, essa sua pretensão.

Aos poucos ela voltou a sorrir, curtir seu apêzinho decorado com bom gosto e reunir seus poucos amigos para mostrar, com competência, dotes culinários que não imaginávamos. Praticamente seus amigos se reduziam a seis nomes: eu, João Francisco, Maria Helena, Rosângela Barros, Pedro Miranda e Bello Menezes, uma espécie de tio querido de todos nós, advogado e defensor incansável de presos políticos.

Uma vez, dei de presente a Carmela uma xilogravura de minha autoria e recebi em troca algo que até hoje guardo com muito carinho: uma edição quase artesanal de “Viaje a la Semilla” de Alejo Carpentier, que ela trouxera de Cuba. Aliás, a grande admiração que eu tenho pelo escritor cubano nos aproximou muito. E, mais que isso, permitiu-me arriscar a lhe apresentar Chiara, com quem praticamente iniciei a minha veneração pelo romancista.

Combinei um dia com Chiara que a levaria para conhecer Carmela, e ela então me pediu que consultasse Maria Goretti. Maria Goretti concordou imediatamente e disse mesmo que já estava acostumada com as nossas loucuras e gostava muito de aprender coisas conosco. A concordância de minhas “duas amigas” favoreceu o encontro que aconteceu num chá com bolo que Carmela nos ofereceu numa tarde de maio, com um frio gostoso e prematuro. No início desse chá, quem estava comigo era Chiara. Ela e Carmela ficaram amigas imediatamente. Depois, na mesma tarde, Chiara se foi e ficou Maria Goretti, de quem ela também gostou muito. Antes, é preciso dizer que, autorizado por minhas duas amigas, eu contei nossa história para Carmela. Ela surpreendentemente não se espantou, contando, inclusive, que um tio seu, irmão de seu pai, há muito falecido, tivera uma história muito parecida com a minha. Era praticamente igual: ele se comunicava com uma mulher através de uma outra, que igualmente sabia de tudo e concordava de ser o aparelho dessa comunicação. Igualmente, seu tio sentira uma paixão fortíssima pela primeira e soubera, com o tempo, transformar essa paixão numa grande amizade. Casou-se mais tarde com uma outra mulher, uma terceira, e viveu com ela até o fim da vida, construindo uma família de muitos filhos, netos e bisnetos. Interessante também foi o fato de que essa comunicação transcorreu num determinado período, algo, pelo que eu me lembro de Carmela contar, em torno de trinta anos.



Compartilhar a nossa história com Carmela foi agradável. A partir daquela conversa, Carmela juntou-se ao nosso amigo Antônio Amorim, já falecido, única pessoa que sabia daquela história que demarcava minha vida desde os cinco anos.

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