47- APRESENTANDO
CARMELA
A década de 70 confirmava no seu início, o
endurecimento do Regime Militar sob o governo do General Médici. Os militares
com seu aparato poderoso começaram a ganhar a luta contra a guerrilha,
sufocando-a aos poucos, destruindo sua resistência através de violentos métodos
de tortura e até mesmo através do aniquilamento puro e simples. Muito pouco se
falava, na imprensa em geral, de que algum grupo ainda resistia. O governo,
definitivamente, ganhara a batalha.
Muitos desses combatentes urbanos passaram por um
treinamento de guerrilha em Cuba e pretendiam, de início, voltar ao Brasil e
reorientar os caminhos da resistência, esperançosos ainda de reverter a
situação. Alguns desses combatentes eram conhecidos meus e, sem me envolver diretamente,
eu os ajudava, buscando uma ou outra casa de confiança na qual eles pudessem se
esconder de forma provisória ou ajudando-os na escuridão da noite a trocar de
cidade, por exemplo. Outros, mesmo que não fossem conhecidos, também recebiam
ajuda, desde que as organizações nos pedissem. Junto comigo, muitas pessoas
fizeram parte dessa rede de apoio, ajudando a muitos, que inclusive retornavam
ao Brasil num momento que era quase impossível tentar alguma forma de reação.
Carmela era uma dessas pessoas. Voltara de Cuba e
reentrara secretamente no Brasil em agosto de 1972. Voltara mais por que sua
mãe adoecera e estava em estado terminal, com um câncer que se disseminara pelo
corpo. Infelizmente, Carmela não conseguiu, como queria, chegar em sua cidade (pelo
risco de ser presa, naturalmente) e não pôde, portanto, rever sua mãe antes que
ela morresse. Isso lhe doeu muito. Passou um tempo grande em estado de
depressão, escondida num sítio de Nova Lima, longe de seu estado, São Paulo.
Quando começou a se recuperar, amigos propuseram-lhe que ficasse em Belo
Horizonte, onde não era conhecida e poderia reiniciar a sua vida. Ajudaram-na a
alugar um pequeno apartamento num velho edifício da Praça Raul Soares e,
através de um tio, recebia uma quantia em dinheiro, já que, com a morte da mãe,
tornara-se a única herdeira da família. Esse dinheiro, uma boa quantia para
época, permitia-lhe viver com muita dignidade, e até a dispensaria de buscar
emprego caso assim optasse.
Seus companheiros de guerrilha foram compreensivos,
concordando que ela se aposentasse da luta direta, porque sabiam-na de extrema
confiança, além de ter sido, em tempo de guerrilha, participante dedicada e
responsável por muitas missões de alto risco. Foi-lhe permitido tentar uma vida
nova, embora fosse difícil, naqueles tempos tão vigiados, recomeçar algo. Fora
isso, havia ainda as lembranças tristes: a perda da mãe e as recordações que a
volta ao Brasil lhe traziam de Carlos Alberto, um namorado seu, também
guerrilheiro, que tombara baleado em choque com a polícia, em São Paulo, três
anos antes, em novembro de 69.
Fui contatado em janeiro de 73, com o pedido de que a
ajudasse no seu processo de reinstalar uma vida nova. Carmela não era seu nome
de batismo, nem o nome de guerrilheira. Era o nome que constava nos novos
documentos que ela recebera e que, a princípio, garantiriam a sua volta à
sociedade com segurança. Conheci-a, apresentado por um amigo da rede de ajuda,
num bar chamado “Hi-Fi”, na Praça Raul Soares. Ela era uma mulher alta para os
padrões brasileiros, tinha os cabelos curtinhos, usava óculos de grau e
pareceu-me desajeitada na roupa feminina que vestia. Ela pareceu-me ansiosa,
fumando muito, um cigarro depois do outro, e deixando escapar seu forte sotaque
de Brotas (cidade do interior de São Paulo), através de sua voz muito grave.
Seu sotaque de caipira paulista destoava totalmente do modo de falar na cidade
de nascimento que constava em seus documentos falsos. Ali dizia que ela nascera
em Taiobeiras, norte de Minas, cidade de forte influência baiana, inclusive no
modo cantado de falar.
Com o tempo, à medida que nos víamos com mais
freqüência, fomos ficando amigos, e eu pude senti-la recuperando a confiança e
vencendo as perdas afetuosas que tivera. Incentivei-a a estudar de novo e ela
pôde, então, entrar num cursinho pré-vestibular para tentar um curso de
pedagogia no ano seguinte. Seu sonho de infância era ser professora,
confessou-me emocionada. E ela conseguiria, com certeza, se o acaso não
houvesse barrado no caminho, essa sua pretensão.
Aos poucos ela voltou a sorrir, curtir seu apêzinho
decorado com bom gosto e reunir seus poucos amigos para mostrar, com
competência, dotes culinários que não imaginávamos. Praticamente seus amigos se
reduziam a seis nomes: eu, João Francisco, Maria Helena, Rosângela Barros,
Pedro Miranda e Bello Menezes, uma espécie de tio querido de todos nós,
advogado e defensor incansável de presos políticos.
Uma vez, dei de presente a Carmela uma xilogravura de
minha autoria e recebi em troca algo que até hoje guardo com muito carinho: uma
edição quase artesanal de “Viaje a la Semilla” de Alejo Carpentier, que ela
trouxera de Cuba. Aliás, a grande admiração que eu tenho pelo escritor cubano
nos aproximou muito. E, mais que isso, permitiu-me arriscar a lhe apresentar
Chiara, com quem praticamente iniciei a minha veneração pelo romancista.
Combinei um dia com Chiara que a levaria para conhecer
Carmela, e ela então me pediu que consultasse Maria Goretti. Maria Goretti
concordou imediatamente e disse mesmo que já estava acostumada com as nossas
loucuras e gostava muito de aprender coisas conosco. A concordância de minhas
“duas amigas” favoreceu o encontro que aconteceu num chá com bolo que Carmela
nos ofereceu numa tarde de maio, com um frio gostoso e prematuro. No início
desse chá, quem estava comigo era Chiara. Ela e Carmela ficaram amigas
imediatamente. Depois, na mesma tarde, Chiara se foi e ficou Maria Goretti, de
quem ela também gostou muito. Antes, é preciso dizer que, autorizado por minhas
duas amigas, eu contei nossa história para Carmela. Ela surpreendentemente não
se espantou, contando, inclusive, que um tio seu, irmão de seu pai, há muito
falecido, tivera uma história muito parecida com a minha. Era praticamente
igual: ele se comunicava com uma mulher através de uma outra, que igualmente
sabia de tudo e concordava de ser o aparelho dessa comunicação. Igualmente, seu
tio sentira uma paixão fortíssima pela primeira e soubera, com o tempo,
transformar essa paixão numa grande amizade. Casou-se mais tarde com uma outra
mulher, uma terceira, e viveu com ela até o fim da vida, construindo uma
família de muitos filhos, netos e bisnetos. Interessante também foi o fato de
que essa comunicação transcorreu num determinado período, algo, pelo que eu me
lembro de Carmela contar, em torno de trinta anos.
Compartilhar a nossa história com Carmela foi
agradável. A partir daquela conversa, Carmela juntou-se ao nosso amigo Antônio
Amorim, já falecido, única pessoa que sabia daquela história que demarcava
minha vida desde os cinco anos.
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