sábado, 9 de fevereiro de 2013

29- Vivendo a experiência



29- VIVENDO A EXPERIÊNCIA





Em 65, último ano de ginásio, incorporamos de vez o hábito de estudar juntos. Durante aquele ano, até um pouco antes do meio do terceiro bimestre, além de estudar com o compromisso de nossas matérias, trocávamos informações de leitura. Neste particular, Chiara contribuiu muito mais para mim do que eu para ela.
Aprendi, por exemplo, a admirar um escritor cubano chamado Alejo Carpentier, que recém naquele ano havia sido traduzido no Brasil com o seu romance “O Reino deste Mundo” (El reino de este mundo), livro que foi a porta de entrada para que eu viesse a conhecer, mais tarde, quase toda a sua excelente obra. Descobri o encanto da literatura de Guimarães Rosa, lendo juntos: “Sagarana”, “Corpo de baile”, “Grande sertão: veredas” e “Primeiras histórias”. Mais tarde, completei meus conhecimentos, lendo “Ave palavra”, “Estas histórias” e “Tutaméia”. Até em italiano eu li Guimarães. Aliás, não havia dito ainda que Chiara dominava várias línguas. Estranhamente, apenas o inglês não era seu forte. Eu, por minha vez, não aprendi fluentemente o italiano, mas a semelhança morfológica permitiu-me entender quase toda a versão italiana de “L’ora e il momento de Augusto Matraga”, editado em Milão. Li também poesia, muita poesia.
Não me perguntem, porém, como ela conseguia esses livros todos. Aparentemente, Seu Alcides, pai de Maria Goretti, não era um amante de livros. Nunca entrei em sua casa, mas ele não transparecia ter esse hábito.
Chiara aperfeiçoou em mim um gosto que eu já possuía: o jazz. Tivemos horas fantásticas ouvindo juntos alguns discos que ela conseguiu. Explico: um tio de Maria Goretti, de Belo Horizonte, era discotecário da Rádio Inconfidência e, como tal, possuía em casa (oferta das gravadoras) muitos elepês. Maria Goretti, possivelmente por influência de Chiara, trazia-os para minha casa, e eles foram o nosso material de estudos durante muito tempo. Foi aí que eu descobri que Chiara “tropeçava” no inglês, exibindo um forte acento italiano que não transparecia quando falava em português comigo. Ela ria muito nesses momentos, dizendo que em uma outra vida havia sido uma condessa italiana chamada Giullia Panunzzio, que vivera em Florença antes da Segunda Guerra Mundial. Fora também, em outra vida mais anterior a essa, Annie Bolden Northon, cantora de um prostíbulo em Storyville, num dos quarteirões de baixo meretrício da parte baixa de New Orleans. Além de cantora da noite, era uma espécie de crooner de uma brass-band, cantando em casamentos, aniversários, batizados e funerais. Esta havia sido a vida de que mais havia gostado.
Sua voz feminina de referência era Ella Fitzgerald, segundo ela – e eu também concordo -, a “grande dama do jazz”. Encantava-nos dois discos antigos da cantora: “A Tisket a Tasket”, um disco extremamente swingado do seu tempo de crooner da orquestra de Chick Webb e outro chamado “Pure Ella”, no qual ela era acompanhada pelo pianista Ellis Larkins, em interpretações de músicas de Gershwin. Desse disco, “I’ve got a crush on you” era primorosa. Custei a me acostumar com essa música, mas Chiara tanto insistiu que eu tentasse ouvi-la de novo que numa noite, sozinho em casa, ouvi-a vinte vezes. No final, minha sensibilidade abriu-se para a performance técnica exemplar e a dicção precisa da cantora. Tenho, ainda, nos dias de hoje, o LP antigo com a orquestra de Chick Webb, e consegui em CD, o “Pure Ella”.
Falei há pouco da pouca habilidade de Chiara em falar inglês. Pensei, é claro, nos seus tempos de Annie Bolden Northon, em New Orleans falando francês enquanto o resto do país falava inglês. Talvez viesse daí a dificuldade, uma espécie de memória ancestral, sei lá. Aliás, curiosamente ela cantava bem em inglês. E, meu Deus, como Chiara cantava! Coisa que Maria Goretti não fazia, pois eu já a havia visto tentar numa festinha do Ginásio.
Chiara, apaixonada pela Ella Fitzgerald, propôs-me um dia que elegêssemos uma música que fosse uma espécie de tema de nossa amizade. Tentamos várias, chegamos mesmo a pensar em “I’ve got a crush...” mas optamos por “Misty” (1) de Errol Garney. Chiara tinha um modo curioso de se referir a essa música. Dizia que a nossa música era aquela que Ella cantava parecendo estar com uma bala de mentol refrescante na boca. O fato de Misty ter sido escolhida por nós como homenagem à nossa amizade, sempre fez com que eu me emocionasse cada vez que a ouvia. Até hoje, ouço-a bastante, principalmente quando sinto saudades de Chiara.
Em nossos “exercícios” de inglês, brincamos de traduzir sua letra. Tenho até hoje comigo, a folha de caderno, a caligrafia bonita de Chiara e a tentativa de tradução que fizemos naquele dia (25 de maio de 1965). Transcrevo aqui.

Olhe para mim.
Estou indefeso como um gatinho numa árvore.
E me sinto pendurado numa nuvem.
Não consigo entender
Eu fico confuso só em pegar na sua mão.

Caminhe ao meu lado
e mil violinos começarão a tocar.
Ou seria o som de seu “alô”
a música que ouço?
Eu fico confuso sempre que você está perto.

Você pode dizer que me guia.
E é exatamente o que eu quero que faça
Não percebe como estou completamente perdido.
Por isto eu sigo você.

Sozinho.
Caminharia sozinho por este mundo de fantasias
Sem distinguir meu pé direito do esquerdo,
Minha luva do meu chapéu.
Estou muito confuso e apaixonado.

(1) – Look at me / I'm as helpless as a kitten up a tree /And I feel like I'm clinging to a cloud / I can't understand / I get misty just holding your hand /Walk my way /And a thousand violins beguine to play / Or it might be the sound of your hello /The music I hear / I get misty the moment you're near /You can say that you're leading me on /But it's just what I want you to do / Don't you notice how hopelessly I'm lost /That's why I'm following you /On my own /Would I wander through this wonderland alone /Never knowing my right foot from my left /My hat from my gloves /I'm too misty and too much in love
E tínhamos, apenas quinze anos, eu e Chiara!

Preciso dizer, também, que aquele ano não foi perfeito o tempo todo: em setembro, entrei em crise existencial. Nem Chiara me serviu de remédio. Fiquei paranóico, sentindo-me infeliz e o pior dos caras. Ela tentou me ajudar – e vejam como tudo às vezes é incomprensível – um dia mandei-a embora, de minha casa. Logo ela, minha amiga querida. Isso confirmou o péssimo hábito humano - que quase todos temos -, de descarregar na pessoa mais próxima, e de quem mais gostamos, toda a ira por conta de nossas frustrações. Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Sorte que ela era compreensiva, tolerante e amiga irreparável. Perdoou todas as minhas crises e me amparou, mesmo de longe.

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