terça-feira, 5 de março de 2013

54- O FINAL




54- O FINAL


       
        Estava escrito. Nada podia ser feito...
S... foi, com certeza, a última participação de Chiara em minha vida. Surpreendente, porque eu pensava que o ciclo se encerrara, quando eu tomei o ônibus na rodoviária de Beagá, a caminho do Sul.
        Foi no finalzinho de julho, no ano de 1978, um domingo, depois do almoço. Sai sozinho para almoçar fora, porque me deu preguiça de fazer alguma coisa em casa. Fui ao restaurante da Pescal, um dos melhores da cidade à época. Encontrei, naquela manhã, Sérgio e Viviane, um casal amigo que me convidou a sentar com eles. Agradeci e recusei, porque matutava com uma coisa que eu não sabia exatamente o que era. Havia sonhado de forma intermitente com Chiara... seis meses depois. Alguma coisa me fazia pensar muito nela, aquela manhã. Preferi ficar sozinho. Pedi, inclusive, ao garçom que não se apressasse; que me trouxesse antes um drinque. Precisava por os pensamentos em ordem.
        Morava, nessa época, no meu primeiro apartamento em Rio Grande: na rua General Vitorino, 562, um prédio pequeno de dois andares. Eu morava no segundo, e uma escada lateral dava acesso à minha casa, escada que era isolada por uma porta no nível da rua.
        Quando eu cheguei do almoço e destranquei a porta, vi o bilhete no chão. Pensei inicialmente em Dinei e Neiva ou em Renato e Maria José, casais amigos. Ou então em Veroci, Helena ou Ieda, que também conviviam comigo. Não era nenhum deles.
       
        “Estou em Rio Grande, no Hotel Charrua. Vim ver você. Procure-me. Assinado: S....”
       
        S... era uma boa amiga de Minas, com quem, circunstancialmente, eu havia tido um pequeno caso muito agradável, um pouco antes do meu namoro com a I... . Conheci-a como amiga de Cristiane, uma pessoa para quem eu havia dado aulas particulares de desenho em 1977. Ela havia sido modelo em nossas aulas, ficamos amigos, resolvemos sair juntos um dia, e foi muito legal. Éramos maduros e ficamos naquela noite e em outras, sem compromissos maiores. Gostávamos da companhia um do outro. Eu nunca havia pensado que ela pudesse vir me ver.
        Não quero com isso dizer que fosse raro eu receber visitas de pessoas de Minas aqui no Sul. Em seis meses, eu já recebera a visita de Lúcio, meu mano, e de Sandra Cristina e Jim, seu namorado americano. Não pensava, no entanto, em uma visita amorosa desde que terminara com I e a visse voltar, numa manhã chuvosa, para Minas. Eu ainda não pensava em ter alguém aqui em Rio Grande. Literalmente, eu estava dando um tempo. Contudo, atravessando esse período carente, eu gostei de que ela tivesse vindo.
        Busquei-a no hotel. Pegamos suas malas, e ela foi se hospedar em minha casa. Criou-se o clima: o vinho daquela tarde, a lareira acesa por causa do frio, Piazzola na vitrola... Ela ficou em minha casa por sete dias. Ela cuidou de minha casa, esperou-me carinhosamente com almoços prontos, lavou meus cabelos no banho... Mas eu não queria aquilo. O tempo que eu precisava ter dado em minha vida, havia sido interrompido com aquela visita. Sensível, ela entendeu. Uma manhã deu-me um beijo, deixou um bilhete e voltou para Minas.
        Eu precisava tirar a dúvida. Senti que aquela coisa toda podia ter a mão de Chiara. Liguei para Maria Goretti, um dia depois de S... ter ido embora.
        Eu não sabia como é que se falava com Chiara pelo telefone. Até então nossos encontros haviam sido feitos de forma presencial. Eu não tinha certeza se conseguiria.
        Do outro lado da linha, Maria Goretti atendeu. Quando eu disse que era eu, imediatamente Chiara assumiu a interlocução. Não precisei vê-la, não precisei de sentir o perfume; era ela, eu tinha certeza.
        - Alô, amigo querido...
          Mesmo eu tendo ligado com esse objetivo, eu não estava preparado, eu acho, para o caso de ser ela quem realmente me atendesse.
        - Oi. Tudo bem com você?- respondi emocionado.
        - Vou ser rápida..., os pais de Maria Goretti estão dormindo e podem acordar. Sei que você está ligando por causa de S.... Eu a mandei... sem que ela soubesse, é claro. Senti que você estava muito só e sabia que se deprimiria se eu não fizesse alguma coisa. Foi para o seu bem.
        Fiquei mudo do outro lado da linha. Não sabia o que dizer. Ela tomou novamente a palavra.
        - Mais uma vez, eu vou me despedir de você. Agora será definitivo. Breve você vai encontrar o amor de sua vida e terá a sua família. Sei agora que você estará preparado. Te amo muito... vou desligar.
        Do outro lado, o telefone emudeceu. Fiquei ainda uns cinco minutos na cabine da telefônica. Pelo vidro do prédio, a garoa incessante e o vento forte demarcavam o meu primeiro inverno rio-grandino. Sai dali e atravessei a Praça Tamandaré entre bêbados e prostitutas. Era meia-noite. Aquela lugar era perigoso.
       

Em casa, acendi a lareira, abri uma garrafa de vinho e pus Misty para tocar. Fiquei ali, à beira do fogo. Arrastei um cobertor, tirei os sapatos e dormi como eu estava: de roupas. Sonhei com o jardim de labirintos. Pela primeira vez, iluminado por um sol matutino com um céu de azul intenso e sem nuvens. Misty tocava no meu sonho como se fosse uma trilha sonora trazida pelo vento. Chiara não veio se encontrar comigo dessa vez. Mas era como se ela estivesse em toda parte, nas plantas, no céu, nos ares, na borboleta dourada que em câmara lenta passou frente aos meus olhos, pousou em uma flor e depois, em um volteio gracioso, tomou o rumo do azul, sumindo como uma poeira luminosa no infinito.



FIM

segunda-feira, 4 de março de 2013

53- Rio Grande





53- RIO GRANDE





        Estava chegando o momento que Chiara havia previsto para nossa separação. Aquilo me deixava triste. A princípio eu tentara desafiar a previsão de Chiara a respeito do assunto de me mudar para o Sul. Cheguei mesmo a recusar o primeiro chamado de Zilá, em 1977. Em meu lugar, viria uma colega: Maria José. No final daquele ano, meus chefes da Emater, “me encheram o saco”. Pedi para sair. Telefonei para o Sul dizendo que aceitava vir. Antes, eu que conhecia apenas os estados que faziam fronteira com Minas, fui ao Acre, junto com meu amigo Guido Heleno, dar um curso de Artes Gráficas. Pela primeira vez, uma viagem de avião. Conheci uma nova realidade do Brasil, o Brasil do interior, que mais tarde eu ia rever no filme “Bye, bye, Brasil” de Cacá Diegues. Era o início do tempo das discotecas e dava pena ver arremedos dessas casas no interior acreano. Descobri ali uma outra cara do país.
        Voltei do Acre a tempo de passar o Natal e o Ano Novo com meus pais e meus irmãos. A família estava enorme com a adição de meus sobrinhos, treze ao todo nessa época. Minha mãe pediu um mapa do Brasil para ver a cidade de que eu falava. Assustou-se com a imensa distância. Eu não sabia, quando me despedi de minha mãe, que era a penúltima vez que eu a via.
        Viajei com I..., minha namorada. Na rodoviária de Beagá, no início da manhã, foram despedir-se de mim, meu amigo fiel Aluízio e sua mulher Lês-Sandar. Estava também Celso, meu colega de pensão.
        A longa viagem em ônibus leito serviu para que eu viesse conhecendo o Sul. Cheguei a Rio Grande num domingo, cinco de fevereiro, domingo de Carnaval. Fui recebido por Renato Modernell, um amigo novo. Levou-nos para conhecer o carnaval de rua da cidade. Em estado de choque, dei uma entrevista na Rádio Minuano, rádio local. Renato, amigo dos radialistas, propôs que eles me entrevistassem. Queriam saber a minha opinião sobre o carnaval de Rio Grande, como recém-chegado. Dei uma das mais confusas entrevistas de minha vida. Jantamos depois no “Restaurante e Café Dalila”, comendo uma chuleta com batatas, cheia de confetes, por obra do animado “Bloco da Cobra”, que invadiu o recinto cantando marchinhas. No dia seguinte, eu e I... fomos à praia conhecer o mar. Vimos a água achocolatada pela mistura ocasional com o barro da Lagoa dos Patos, imprópria para o banho. Além disso, aquela manhã ventosa, estava impressionantemente fria. Eu me acostumaria depois com os “humores” do mar do Rio Grande.
               
        No dia treze assinei contrato com a Universidade. Fernando Pedone, o reitor, a quem me levaram a conhecer nesse dia, disse-me que não gostava de arte moderna.
        As aulas começaram em março. No meu primeiro contato com a turma de alunas, de um lado eu olhava para aquelas trinta mulheres, que, pelo outro lado, também me olhavam com sorrisos e olhos arregalados. Meu forte sotaque mineiro era a causa daqueles olhos. Ficaram todas, minhas amigas depois. A primeira turma, a gente nunca esquece.
        Conheci, nos meus primeiros dias de Universidade, Dinei, meu futuro compadre, à época casado com Neiva, uma aluna. Conheci também um casal mineiro, Washington e Valcléria. Parecia que não me era possível esquecer Minas Gerais, mesmo morando quase na fronteira com o Uruguai. Aliás, no feriado de primeiro de maio, fui levado por Dinei e Neiva para conhecer a fronteira: cidade com uma rua de duas pistas, demarcando, de um lado, o Brasil (Chuí); e do outro, o Uruguai (Chuy).
        Levaram-me também ao Forte São Miguel. Lá um bando de moças excursionistas, em alarido como uma vez em Ouro Preto, me chamou a atenção. Repetia-se como um filme, o momento do domingo ouro-pretano: um bando de pombos, no pátio central do Forte, levantou-se ruflante, à medida que as moças alegres desgrudaram-se da guia da excursão. À frente do grupo, uma moça me olhou profundamente. Pelo uniforme colegial, pareceu-me uruguaia. Mordia o lábio inferior delicadamente, franzia o cenho e me sorriu com olhos brilhantes. Captei, na leve brisa, um aroma evanescente de gardênia. Os pombos em círculo pareciam voar em câmara lenta. O barulho das asas batendo parecia o de um disco em rotação errada. Fiquei estático, esperando tudo se assentar, o tempo voltar ao ritmo normal, aquele grupo de vozes e sons das aves se acalmar. Sentei-me no muro de pedra e chorei. A adolescente uruguaia voltou-se mais uma vez para me olhar. Disfarcei acendendo um cigarro e colocando óculos escuros para meus amigos não verem meus olhos vermelhos...

domingo, 3 de março de 2013

52- Tempos de Emater



52- TEMPOS DE EMATER




O final de 75 deu-me, pela primeira vez, a sensação de que se aproximava a hora de Chiara ir embora. Algumas coisas se confirmavam. Minha ida para o Sul, principalmente, anunciava-se como um acerto de suas previsões.
        Naquele ano, mais uma vez, fiz o Festival de Inverno. Desde a morte de Carmela, eu havia pensado que não teria coragem de fazer outro. Sandra, minha amiga, convenceu-me. Resolvi, então, fazer um curso de Litografia com Quaglia, um excelente professor, de quem eu já era amigo.
        Tive a chance, nesse festival, de conhecer duas gaúchas: Zilá e Neli. Aliás, ficamos nos conhecendo um dia, na sala de aula, quando uma delas perdeu a lente de contato, e eu tive a sorte de achar, no lugar menos provável e mais difícil de encontrar: no tanque de água, no meio da umidade onde ela ficava quase imperceptível. Ficamos amigos depois disso, e Zilá me fez o convite para trabalhar em Rio Grande, num curso novo de Educação Artística que a universidade local pretendia abrir. Aceitei. Ela me chamaria no momento em que o Curso estivesse para começar.
        Descobri ali, naquele festival, que eu me dava muito bem com os gaúchos. A maioria de amigos que fiz era do Sul: Nelson Elwanger, Cláudio Eli, Armando Almeida, Paulo Perez e Anete, Paulo Chimendes, Anico Herskovits, Ana Alegria e outros. Tudo se encaminhava para, mais uma vez, Chiara acertar em cheio. Bastava-me esperar, que tudo iria acontecer.
        Quis, então, desafiar, mais uma vez, aquela afirmação de Chiara.
        Comecei o ano de 1976 procurando emprego. Os trabalhos de ilustração haviam minguado por uma determinação do Instituto Nacional do Livro, estipulando um prazo mais apertado para as editoras apresentarem os livros para o ano escolar. Na pressa, elas, as editoras, preferiram contratar agências de publicidade que ilustravam o livro muito mais rápido do que eu e a Sandra. Eu fiquei, outra vez, totalmente sem dinheiro. Uma ou outra capa de livro que amigos me conseguiam não rendiam o suficiente para que eu fosse muito longe. Estava com a pensão atrasada e contando com a boa vontade e bom coração de Dona Nilda, a proprietária. Nessa época, eu não pedia mais dinheiro de casa. Virava-me como podia. Consegui umas aulas particulares de desenho. Tinha três alunos e o que eu arrecadava com os três equivalia mais ou menos a um salário mínimo da época. Oitenta por cento daquele dinheiro correspondia à mensalidade da pensão. Fumava porque filava dos amigos compreensivos. Pelo menos, na pensão, eu tinha almoço e janta até sábado e almoço aos domingos. No final desse dia, como não havia janta, eu corria sempre à casa de um amigo quando tinha fome. Dona Célia e Seu Alberto, pais de Sandra, convidavam-me sempre para o lanche do fim da tarde. Muitas vezes fui também à casa de meu irmão Zezé, onde era garantida uma janta reconfortante.
        Por volta do mês de maio, meu amigo Aluízio conseguiu para mim, um emprego fixo na EMATER (à época, ACAR). Aquilo conseguiu fazer com que eu recuperasse a auto-estima. Pude pagar de novo tudo o que eu devia e andar outra vez de cabeça erguida. Era ótimo trabalhar ali: eu gostava de todos, e todos gostavam de mim. Cresci rápido no novo emprego. Em 1977 houve a mudança de nome da empresa. Muitas mudanças para ampliá-la foram propostas, inclusive a transformação da Seção de Arte em que eu trabalhava, para um novo Serviço de Artes Gráficas, que juntava em um só setor a seção dos desenhistas com o Parque Gráfico da Empresa. Fui convidado pelos novos diretores para chefiar aquele serviço. Havia obtido um excelente progresso em menos de um ano. Infelizmente, alguns colegas não conseguiram lidar muito bem com aquela minha promoção. Funcionários mais antigos (e eu não tiro a razão deles) sentiram-se preteridos e prejudicados. Eu só aceitei porque havia a promessa de contratar pessoas de fora caso eu não aceitasse. Fiz as pazes com todos, que descobriram que eu não havia usado nenhum tipo de subterfúgio para conseguir aquele cargo.
        Não pude evitar, no entanto, de me indispor com Rubem Marchi e Otomar, dois diretores pedantes, da nova equipe que fora contratada no momento de ampliação da empresa. O fato de termos nos transferido para um prédio no Barro Preto aliviou um pouco a tensão. Era quase certo, eu sabia, que eu não ia agüentar. Pude, contudo, formar uma excelente equipe de desenhistas: Rosângela Quinaud e Sandra Cristina (antigas colegas de escola) Quintino Boaventura, Selma e os antigos companheiros: Sérgio Zorzin, Aluísio, Maia e Ângela. Havia ainda: Tânia (a revisora) Magdala, Dirce, Dulce e Terezinha, na composição de textos. Vivemos bons momentos juntos.

sábado, 2 de março de 2013

51- 1974:ano de encerrar a faculdade



51- 1974: ANO DE ENCERRAR A FACULDADE



Formei-me naquele ano de 1974. Não houve festa, porque, “modernos”, nós nos recusamos a comemorar, para tristeza de nossos pais. Completei o curso, e festejamos (intimamente) com cafezinho e brigadeiro, na sala de Beatriz Coelho, a diretora. Dureza ia ser, a partir dali, partir para minha definição profissional. Mesmo que Chiara um dia houvesse me dito que meu futuro profissional estava garantido, eu tive a inquietação natural de quem tem um diploma na mão e um futuro amedrontador pela frente. Meu medo era de que aquilo tudo não desse certo. Se eu tivesse estudado Engenharia, por exemplo, teria o futuro garantido. Essa é só uma suposição: todos já sabem de minha aversão às ciências exatas.
       
        Naquele ano e no seguinte, devo ter me apaixonado umas cinco vezes: paixões platônicas, que eu não tive coragem de declarar. Por causa disso, daquela timidez que me contaminou, tive pouquíssimas namoradas naquele tempo.    
        Em 1975 as coisas estabilizaram-se um pouco, quando trabalhei com Yara Tupinambá no painel da Câmara de Vereadores. Aquele dinheiro garantiu-me a sobrevivência por um bom tempo. Depois, quase no fim do ano, Sandra dividiu comigo as ilustrações de uma nova série da Editora Lê: quatro volumes de Comunicação e Expressão, para o primeiro grau. Respirei melhor ainda. Pude pagar umas dívidas e reorganizar a minha vida. Depois, outras ilustrações me ajudaram a organizar meus rumos.
        Pude então tocar a vida com menos culpa. Naquele ano visitei pela segunda vez a Bienal de São Paulo. “Overdose de cultura”, dizíamos, eu, Sandra e outros amigos. Pela primeira vez, fui ao Masp. Chorei na frente das “Meninas” (Rosa e Azul) de Renoir.

sexta-feira, 1 de março de 2013

50- Conhecendo o tio de Carmela



50- CONHECENDO O TIO DE CARMELA




Naquele ano eu comecei a trabalhar como assistente de uma professora da escola, a artista Yara Tupinambá. Realizamos murais para a Assembléia Legislativa do Estado e para a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte. Trabalhei também com ela num projeto de resgaste de arcas, baús e oratórios mineiros do século XVIII. Reproduzíamos as peças, fazíamos uma ampla pesquisa iconográfica, executávamos as réplicas e distribuíamos entre as casas de decoração. Foi um sucesso de vendas.  Houve uma ampla repercussão na imprensa e meu pai ficou feliz de ver meu nome e minha foto aparecer pela primeira vez, em um jornal. Mostrou orgulhoso para todos os seus vizinhos.
Uma grande encomenda dessas peças foi feita por uma importante casa de decoração de São Paulo. Trabalhamos um bom tempo para atender aquele pedido. Quando Yara enviou as peças, a transportadora não foi muito cuidadosa e algumas delas chegaram ao destino com pequenos arranhões e estragos na pintura. Yara encarregou-me então de viajar a São Paulo, ir até o deposito dessa loja e restaurá-las, no local.
Viajei numa quinta-feira à noite, calculando que, em um dia (sexta-feira) eu teria tempo suficiente para as correções. E assim foi feito. Eu havia calculado também que aproveitaria o sábado e o domingo, para tentar um contato com o tio de Carmela, na cidade de Brotas.
Antes de irmos para Ouro Preto e termos aquele triste episódio de sua morte, Carmela me dera o endereço e o telefone do tio. Seu nome era Josias Antônio Carvalhaes. Por medida de segurança, ela não podia fazer contato com ele. Pediu-me então que, quando fosse possível, eu lhe entregasse uma carta. Eu ainda não o havia feito e, como não houve jeito de avisá-lo a tempo dos funerais, não havia ainda conseguido conhecê-lo.
Estando em São Paulo, pude então tentar o contato. Do hotel, fiz contato com a fazenda. Consegui, depois de várias tentativas, que o telefone atendesse. Ele ficou feliz de falar comigo e pareceu-me contente pelo fato de eu estar em São Paulo. Propus a ele ir até Brotas e ele disse que seria um prazer me receber.
Tomei um ônibus no sábado de manhã, bem cedinho e percorri os 261 quilômetros que separam Brotas de São Paulo. Cheguei onze, onze e pouco e consegui localizá-lo. Ele me esperava ansioso. Foi fácil de achá-lo porque, à época, Brotas era uma cidade bem pequenininha e ele havia me dito que me esperaria num jipe vermelho. Além disso, eu havia viajado ao lado de um senhor da cidade de Jaú, que o conhecia e disse que me ajudaria a encontrá-lo quando chegássemos.
Ele me recebeu com um abraço afetuoso. Disse que queria muito me conhecer porque sabia que eu havia sido um dos mais importantes amigos de sua sobrinha, antes dela morrer. Quem havia lhe falado a meu respeito havia sido alguém da organização de apoio, que era também o encarregado do repasse do dinheiro que ele mandava mensalmente para Carmela. Ele lamentava profundamente, haver sido privado, por segurança, de poder vê-la, sua única sobrinha e único parente que restara depois que morreu sua irmã, a mãe de Carmela. Engraçado é que ele se habituara a chamá-la de Carmela como todos nós. Às vezes falava Maria Lídice, mas a maior parte do tempo usava o seu nome dos documentos falsos.

Fomos até sua propriedade, uma bonita fazenda chamada São Jerônimo, na localidade de Torrinha. Ele, viúvo e sem filhos, vivia ali com a família do capataz e mais uns cinco empregados. Tinha negócios em Jaú, em Campinas e Ribeirão Preto, para onde viajava seguidamente. Por isso havia sido tão difícil localizá-lo quando da morte de Carmela. Naquela época, não havia a telefonia rural desenvolvida como hoje. A mãe de Carmela, quando viva, morara ali com ele, tendo inclusive transferido para lá todas as coisas da filha.
Entreguei a ele a carta de Carmela, que foi lida com lágrimas nos olhos. Amava a sobrinha como a filha que nunca teve. Sofreu muito com Solange, sua irmã, quando Carmela estava na guerrilha. Sabia os perigos que ela passava. Ficou aliviado quando soube que ela conseguira ir para Cuba. Teve pena dela não ter podido ver a mãe, antes de morrer.
Pude, com emoção, conhecer um pouco mais da história de minha amiga, seus álbuns de foto, diplomas de mérito da vida colegial e até os seus livros de poesia (autoria dela) escritos com uma caligrafia caprichosa e irrepreensível. Textos bons, fortes e sensíveis. Abri seu armário de brinquedos e pude perceber ali, pelo estado de conservação, o mesmo capricho que eu notara em seu apartamento bem decorado. Impressionou-me que alguém tão organizada e metódica vivesse, à época da guerrilha, no mato e sem conforto.
Seu Josias insistiu que eu escolhesse entre aqueles objetos, uma lembrança para mim. A princípio recusei, por achar que não tinha direito, mas ele fez questão e aceitei agradecido. Escolhi uma medalha de Santa Bárbara, a “Iansã” (deusa dos ventos e das tempestades), de quem Carmela, mística fervorosa, era tão devota. Nada poderia me fazer lembrar mais dela. Tenho essa medalha guardada até hoje comigo e me sinto protegido com ela.

Tomei o ônibus de volta para São Paulo na tarde do domingo. Ele pediu-me que mantivesse contato. Eu prometi que assim o faria.
Voltei para Belo Horizonte no domingo, com a sensação boa de ter cumprido a promessa que eu fizera à minha amiga. Naquele ano troquei ainda muitas cartas com Seu Josias. Ele se apegou muito a mim, porque eu era uma referência para que ele se lembrasse da sobrinha. Fico feliz de ter contribuído para dar a ele um pouco de felicidade.
Visitei-o ainda três vezes: uma vez, na data de aniversário de Carmela (19 de setembro), quando ele mandou celebrar uma bonita missa. Tive oportunidade, na igreja, de dar o meu depoimento sobre minha amiga; outra, quando os amigos da sobrinha fizeram a ela uma homenagem bonita, denominando com seu nome, mesmo que de forma não oficial, uma linda cachoeira do Rio Jacaré-Pepira, um rio famoso da cidade, e a última, em 77, quando foi tomado de muitas saudades e pediu-me que fosse conversar com ele. Cheguei a passar uma semana na fazenda. Aproveitei para desenhar e descansar depois de um período de muito trabalho.
No dia 02 de novembro, dia de Finados, ele veio a Belo Horizonte e pediu que eu o acompanhasse até o cemitério. Depositamos no túmulo de Carmela um lindo ramalhete de flores, e ele se emocionou muito. Planejava levá-lo à minha casa em Matozinhos pra que conhecesse meu pai. Mas não foi possível. Ele tinha diabetes e sofreu uma crise de hipoglicemia ainda no hotel. Ajudei-o a ir à clínica de um médico amigo meu, e ele ficou, por precaução, um dia internado. No dia seguinte, recuperado, teve que voltar a Brotas, premido pelas obrigações de trabalho.

Fiz, ainda, através de cartas, muitos contatos com ele até a sua morte em 1987. De certa maneira ele se apegou muito a mim, e eu aprendi a gostar dele como se fosse também meu tio. Alguns meses antes de morrer, emocionado, numa carta ele me pediu que divulgasse para as pessoas o verdadeiro nome de Carmela. Queria que todos soubessem como ela verdadeiramente se chamava. Cumpri o seu pedido avisando a todos que a conheciam. De certo modo, neste livro, dou também seqüência ao cumprimento dessa promessa, contando a todos o seu verdadeiro nome.