48- TRAGÉDIA
Em 1973, fiz o meu primeiro Festival de Inverno em
Ouro Preto. O festival era, e ainda é, um dos mais tradicionais eventos
culturais promovido pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal de
Minas Gerais, oferecendo vários cursos em diversas áreas, como, artes
plásticas, música, teatro, literatura e outras. Vi ali uma ótima oportunidade
de integrar Carmela à vida normal e convidei-a a fazer o Festival comigo. Ela
fez sua inscrição em um dos cursos de literatura. Estava eufórica. Voltar a
lidar assim, efetivamente, com os estudos estava deixando-a feliz.
Planejamos felizes nossa estada em Ouro Preto, e pude,
inclusive, apresentá-la, sem dizer do seu passado aos meus amigos com quem
dividiríamos o aluguel de uma casa, durante nossa estada na cidade. Ela se
integrou de forma plena ao grupo, que a recebeu muito bem.
Como nunca havia visto, no pouquíssimo tempo em que eu
a conhecia, ela estava feliz. Mais feliz ainda porque conhecera Carlo Carbajal,
um equatoriano que fazia curso de música e que também ficou nosso amigo,
perfeitamente adaptado à nossa turma. Carmela se apaixonou por ele e
confessou-me isso, um dia. Tranqüilizava-a saber que contou a ele tudo de sua
vida passada, de sua atividade política e sua identidade dupla e tivera dele
toda a compreensão. Tive, nesta nossa conversa, a oportunidade de saber também
o seu verdadeiro nome, que até então, eu não sabia: Maria Lídice. Planejavam,
ela e Carlo, ir embora juntos para o Equador, e seria uma maneira mais segura de
ela continuar a vida, porque aqui ainda havia riscos, embora pequenos. Tudo
parecia correr de forma muito feliz para a minha amiga.
No segundo fim de semana do festival, recebi a visita
de Chiara. Maria Goretti não arranjara ainda nenhum outro namorado e começava a
descobrir prazer em pegar seu carro e viajar. Havia se transformado mesmo em
uma mulher moderna. Fora parar em Ouro Preto naquele sábado. Eu saía de minha
aula no velho prédio da Escola de Minas e encontrei-a ali, recostada ao carro,
me esperando. Eu já me acostumara a distinguir quando era uma, quando era
outra. Já não dependia nem mesmo do cenho franzido, do jeito especial de morder
o lábio e do perfume, para distinguí-las. Sabia de longe, enquanto descia as
escadas, que quem estava ali era Maria Goretti, mas sabia também que, se ela
estava ali, era por obra de Chiara.
Ela me cumprimentou rindo e comentando “onde é que a
nossa amiga ia levá-la da próxima vez, pois nunca em sua vida tivera intenção
de estar em Ouro Preto em julho, porque detestava frio, e Ouro Preto era gelado
nessa época do ano”. Cumprimentei-a e convidei-a a vir comigo até o
“restaurante do Chicão”, onde almoçávamos aos sábados. Combinamos, antes, que
procuraríamos meus amigos. Encontramos apenas Carmela, Carlo e Júlio Espíndola.
Durante o almoço, Carmela e Maria Goretti conversaram muito e puderam matar as
saudades, principalmente porque Carmela, quando me falara de seu namorado
equatoriano, dissera-me estar louca para contar a grande novidade para nossas
duas amigas.
Ficamos um bom tempo, nós cinco, depois do almoço,
tomando o sol gostoso na praça. Mais tarde, Carmela decidiu acompanhar Carlo
até a república em que ele estava instalado e Júlio saiu para caminhar um
pouco.
Quando todos se foram, Chiara pôde finalmente aparecer.
E foi do modo feliz que ela sempre aparecia. Deu-me um beijo estalado no rosto
e disse que estava com saudades. Ao contrário de Maria Goretti, adorava Ouro
Preto com o a temperatura fria, seu ar de mistério e a velha arquitetura
colonial. Ficamos juntos, aproveitando o gostoso sol de meio de tarde e botamos
nossas conversas em dia.
Maria Goretti voltou em seguida, pegamos o carro e
fomos até a nossa casa, onde “as” convidei para ficar, visto que havia um
quarto sobrando. Seria agradável tê-las conosco naquele fim de semana.
E aquela noite de sábado foi agradabilíssima. Chiara
esteve comigo a maior parte do tempo, fingindo ser Maria Goretti; era mais
fácil assim. Só eu e Carmela sabíamos de Chiara. De todo o modo, ela se
integrou bem ao grupo e todos gostaram muito dela.
Naquela noite, Carmela nos abraçou e sussurrou
baixinho para nós dois:
- No meu tempo de guerrilha, nunca tive medo de
morrer. Tenho agora porque estou feliz como nunca.
Dissemos para ela não pensar em coisa ruim, em nada
que atrapalhasse sua felicidade.
No dia seguinte, domingo, acordamos tarde e combinamos
de ir juntos, quase todos da casa, à Mariana, pertinho de Ouro Preto.
Combinamos que almoçaríamos lá e voltaríamos de trem, um tradicional passeio
entre as duas cidades.
Quem foi comigo era Maria Goretti, que confessou estar
gostando muito do passeio e das novidades, vendo ali uma forma de relaxar do
intenso período de estudos que tivera na Universidade. E a Maria Goretti que
estava comigo era, como já disse, uma pessoa de fortes premonições. Nas volta
de Mariana, no vagão quase vazio do trem, estava o nosso grupo e mais umas oito
ou dez pessoas. No meio da viagem, Maria Goretti pegou a minha mão. Olhei para
ela, e ela estava pálida. Sua mão suada e fria apertou a minha, e ela respirou
fundo fechando os olhos, dizendo:
- Vem comigo.
E fomos juntos para o fim do vagão, onde não havia
ninguém. Ela, então, com um ar muito grave, disse-me que tivera ali uma
premonição horrível. Viu Carmela e Carlo, acidentados, gravemente acidentados,
numa estrada que não sabia qual era.
- Vi também a todos nós, seus amigos, muito tristes. -
continuou.
Com os olhos fechados, pálida e com a voz trêmula,
pediu-me que me preparasse para o pior.
- É inevitável. É muito triste, mas é inevitável. -
completou.
Acostumado que estava ao fato de que tudo que ela
dizia se concretizava, tive um choque pela gravidade da revelação. Ela apertou
a minha mão e pediu-me calma. Era impossível ter calma. Eu sabia, e ela sabia.
Mas sabíamos também que não poderíamos fazer nada para evitar o que ia
acontecer. Sabíamos que era difícil, mas tínhamos que manter a serenidade. Não
podíamos interferir no que estava escrito no destino. Só não sabíamos quando e
onde tudo aconteceria. Nossa esperança era que fosse o mais distante possível.
Não preciso dizer que os últimos dez dias daquele
festival foram tensos e pesados. Convenhamos, não é fácil saber uma coisa como
aquela que eu sabia e fingir que estava tudo normal. Puxa vida, eu aprendera a
gostar muito de Carmela e me doía pensar que agora que ela conseguia
reorganizar sua vida, arranjando inclusive alguém para amar, tudo fosse se
acabar de repente, fazendo os sonhos parecerem tão inúteis. Maria Goretti, que
descobrira o fato, voltou no último fim de semana para estar conosco e tentou,
como eu, fingir naturalidade num momento tão difícil. Chiara, sensível ao fato,
não apareceu, deixando que Maria Goretti me apoiasse, uma vez que essa se
tornara, a exemplo dela, grande amiga de Carmela. No finzinho do domingo, dei
um jeito de voltar para Beagá com minha amiga, disfarçando para que nenhuma
outra pessoa da casa se oferecesse para vir junto. Queria estar sozinho com
ela. Nós dois, que havíamos disfarçado a dor por tanto tempo, precisávamos
ficar sós por causa de nossa tristeza.
Pudemos, então, conversar. Perguntei-lhe se ela já
sabia quando tudo ia acontecer, e ela disse que não o sabia com precisão.
Apenas sentia que estava perto. Que eu fosse forte. Pude então compartilhar com
a minha amiga uma grande tristeza. Senti raiva, muito raiva por as coisas serem
assim. Por tanta gente ruim estar viva no mundo, e Carmela, uma pessoa boa e
sensível, ir-se tão cedo.
Chegando a Belo Horizonte, Maria Goretti levou-me até
a pensão em que eu morava e parou seu carro ali na porta, ficando um pouco comigo.
Foi um tempo suficiente para Chiara vir e me confortar com um abraço. Deixou-me
chorar bastante, e aquilo me aliviou um pouco. Deu-me um beijo no rosto e
pediu-me que tivesse calma. Maria Goretti voltou, despediu-se e disse que
precisava ir. Fiquei olhando o Fusca descer a rua e virar a esquina na Avenida
do Contorno, em busca da estrada para Matozinhos.
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