quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

28- Novas determinações




28- NOVAS DETERMINAÇÕES
       




Aquele encontro na igreja definiu a minha vida. Pelo menos passei a ter uma noção maior do terreno em que eu estava pisando e a aceitar, mesmo sem compreender muito, que a relação restabelecida com Chiara a partir daquele encontro, determinava limites, mas, pelo menos, esclarecia-me (pela primeira vez) que ela voltava para ficar comigo, conforme a situação do momento permitia entender como ficar. Isso tudo me amadurecia muito. Já raciocinava como um adulto e, como já relatei, foi muito natural essa passagem. Acredito que fui sendo preparado aos poucos para essa minha nova fase.
        Na seqüência, poucos dias depois do encontro da procissão, ela voltou a falar comigo, na saída do Ginásio, complementando sua conversa. Antes disso, minha ansiedade me fez pensar que o tempo que ela demorara para retomar essa conversa estava sendo bastante longo. Mais tarde, moderado, fiz as contas e descobri que entre o dia do jubileu e o encontro seguinte, passaram-se apenas nove dias, pouco mais que uma semana.
        Uma aula vazia, a ausência de um professor, permitiu-nos sentar em um banco do corredor e conversar como se falássemos de algum assunto de aula. O tom circunspeto, os cadernos abertos no colo e as expressões sérias afastaram dali – evitando que nos procurasse para conversar – qualquer colega inconveniente.
        Chiara insistiu em que eu lhe prometesse levar uma vida normal: ter namoradas como todos os rapazes, estudar, trabalhar e ficar bem à vontade no modo de viver a vida. Disse-me que aquilo era importante para ela, sabia que assim não me prejudicaria, e isso poderia ajudar a mim e Maria Goretti a lidarmos com aquela situação. Ela sabia que Maria Goretti lentamente passava a compreender o que ocorria e pediu-me, mesmo, que eu estivesse preparado para, no momento certo, explicar tudo a ela, de um modo melhor, esclarecendo as dúvidas que restassem.
        Contudo, era difícil para mim, achar que era tudo normal. Levei muito tempo, na verdade, para entender a extensão daquela nossa relação. Nada mais normal que eu confundisse, que eu julgasse estar perdidamente apaixonado e não tivesse a serenidade de me conter ou de me permitir entender. Aceitei todos os seus pedidos de moderação, muito embora, na maior parte do tempo, o que eu queria mesmo era tê-la para mim, sem medo de me fragmentar em pedaços junto com ela, se fizéssemos amor. Eu já pensava em fazer amor nesse tempo, embora, se pensasse melhor, esbarraria de novo no empecilho que nos ligava a Maria Goretti: era dela o corpo, não de Chiara.
        Durante a nossa conversa, Chiara disfarçou várias vezes e me chamou a atenção para a expansão de meus gestos. Eu, boa parte das vezes, mostrei relutâncias em atendê-la, ainda que, por respeito, acabasse sempre a atendendo. Meu problema era o excesso de gesticulação. Ela disfarçava bem, rindo como se eu estivesse lhe contando um caso, num intervalo daquele momento de estudos. Às vezes, apontava para o caderno, como se dissesse: “Vamos voltar aos estudos”. Restava-me suspirar, sorrir e atender.
        Chiara enfatizou, mais uma vez, que Maria Goretti era especial porque permitia nossa ligação acontecer e que eu não deixasse de pensar nunca: um dia aquilo se acabaria, ela (Chiara) iria embora em definitivo, e Maria Goretti também seguiria uma vida normal. Casar-se-ia com uma pessoa que não era eu, talvez nunca viesse saber integralmente do que fizemos juntos, e eu, deveria ser maduro para entender tudo, sendo compreensivo. O importante era eu saber que o nosso encontro definitivo (meu e dela) aconteceria num tempo que não é esse e nem pode ser medido com as nossas limitações.

Eu tentava aprender, tentava me educar para compreender tudo aquilo, aproveitar as experiências de criança para elaborar os fatos que aconteciam naquele momento, da minha adolescência. Não conseguia, porém, deixar de pensar em Chiara numa dimensão na qual Maria Goretti não se enquadrava. Por mais que eu as confundisse, por mais que na maioria das vezes eu as associasse, a primeira estava sempre num plano acima da segunda. Defini mesmo, à medida que amadurecemos nossos contatos que por Maria Goretti eu não sentia (ou não deveria sentir) nenhum tipo de atração embora ela fosse bonita, inteligente. Quando ela “era” Chiara, aí sim, meu corpo se eletrizava e eu não queria que acabassem nunca os nossos encontros. Não conseguia pensar de outra forma que não fosse essa. 

Tudo que aconteceu depois daqueles encontros na igreja e no corredor do Ginásio, teve a dosagem certa, os padrões definidos e um tempo de se concluir. Conversávamos, a partir daí, sempre que podíamos, e foram momentos nos quais eu aprendi muito. Chiara era extremamente sensível e ágil de raciocínio; ser seu interlocutor nos anos em que convivemos me amadureceu bastante. Com ela passei a ler muito mais, ela me apresentou autores, e até o meu desenho se aprimorou. Quem nos visse ou nos ouvisse discutir, ficaria assustado com a precocidade de nosso envolvimento intelectual. Houve mesmo colegas de Ginásio comentando que competíamos e que éramos exibidos por mostrar superioridade sobre a turma. Incrível que tenham pensado assim, porque minhas intervenções só aconteciam nas disciplinas humanísticas. Desde essa época, eu já mostrava uma incrível dificuldade com as ciências exatas, coisa que nem Chiara, com seu afeto e nem mesmo Maria Goretti, com sua paciência, conseguiram amainar.
Um dia, pela primeira vez depois do nosso tempo de criança, Chiara me falou novamente que eu deveria ser cuidadoso com a memória em virtude do livro que eu teria a incumbência de escrever. No encontro da igreja ela disse que um dia autorizaria que eu o escrevesse. Nesse segundo momento ela já considerava isso certo e praticamente isso virava, para mim, uma missão. Fui atento ao seu pedido e lentamente fui gestando os dados que compilo agora.
Nos nossos encontros de estudo, devo a ela, o fato de ter conseguido passar no vestibular, em minha primeira tentativa quando o fiz para o ano de 1970. Tive, é certo, tropeços no resto do Ginásio e no Científico, pela inapetência com as exatas, fragilidade que sempre compensei tirando ótimas notas em português. E era maravilhoso contar com o seu incentivo, porque ela também gostava de escrever e o fazia muito bem.
É importante ressaltar que Chiara era mesmo dona de um texto muito competente. Trazia-me os seus escritos, ou então os escrevia do meu lado em alguns encontros mais longos que tivemos. Maria Goretti, por sua vez, não tinha a mesma habilidade para a escrita. Não que escrevesse mal, mas nunca se destacou, por exemplo, nas vezes em que compartilhamos a mesma sala de aula. Está aí um dos motivos de ela aceitar estudar comigo em minha casa.
Pelos tropeços no Ginásio, e mais tarde no Científico, o amigo leitor pode perceber que ela e eu não estivemos juntos na vida estudantil o tempo todo. Maria Goretti, no geral, foi muito mais regular do que eu. Formamo-nos no Ginásio, mas eu acabei tropeçando no primeiro científico, fato que a fez adiantar-se um ano, tornar-se universitária antes de mim e nunca mais sermos colegas de classe.

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