28- NOVAS
DETERMINAÇÕES
Aquele encontro na igreja definiu a minha vida. Pelo
menos passei a ter uma noção maior do terreno em que eu estava pisando e a
aceitar, mesmo sem compreender muito, que a relação restabelecida com Chiara a
partir daquele encontro, determinava limites, mas, pelo menos, esclarecia-me
(pela primeira vez) que ela voltava para ficar comigo, conforme a situação do
momento permitia entender como ficar. Isso tudo me amadurecia muito. Já
raciocinava como um adulto e, como já relatei, foi muito natural essa passagem.
Acredito que fui sendo preparado aos poucos para essa minha nova fase.
Na seqüência, poucos dias depois do
encontro da procissão, ela voltou a falar comigo, na saída do Ginásio,
complementando sua conversa. Antes disso, minha ansiedade me fez pensar que o
tempo que ela demorara para retomar essa conversa estava sendo bastante longo.
Mais tarde, moderado, fiz as contas e descobri que entre o dia do jubileu e o
encontro seguinte, passaram-se apenas nove dias, pouco mais que uma semana.
Uma aula vazia, a ausência de um
professor, permitiu-nos sentar em um banco do corredor e conversar como se
falássemos de algum assunto de aula. O tom circunspeto, os cadernos abertos no
colo e as expressões sérias afastaram dali – evitando que nos procurasse para
conversar – qualquer colega inconveniente.
Chiara insistiu em que eu lhe prometesse
levar uma vida normal: ter namoradas como todos os rapazes, estudar, trabalhar
e ficar bem à vontade no modo de viver a vida. Disse-me que aquilo era importante
para ela, sabia que assim não me prejudicaria, e isso poderia ajudar a mim e
Maria Goretti a lidarmos com aquela situação. Ela sabia que Maria Goretti
lentamente passava a compreender o que ocorria e pediu-me, mesmo, que eu
estivesse preparado para, no momento certo, explicar tudo a ela, de um modo
melhor, esclarecendo as dúvidas que restassem.
Contudo, era difícil para mim, achar que
era tudo normal. Levei muito tempo, na verdade, para entender a extensão
daquela nossa relação. Nada mais normal que eu confundisse, que eu julgasse
estar perdidamente apaixonado e não tivesse a serenidade de me conter ou de me
permitir entender. Aceitei todos os seus pedidos de moderação, muito embora, na
maior parte do tempo, o que eu queria mesmo era tê-la para mim, sem medo de me
fragmentar em pedaços junto com ela, se fizéssemos amor. Eu já pensava em fazer
amor nesse tempo, embora, se pensasse melhor, esbarraria de novo no empecilho
que nos ligava a Maria Goretti: era dela o corpo, não de Chiara.
Durante a nossa conversa, Chiara
disfarçou várias vezes e me chamou a atenção para a expansão de meus gestos.
Eu, boa parte das vezes, mostrei relutâncias em atendê-la, ainda que, por
respeito, acabasse sempre a atendendo. Meu problema era o excesso de
gesticulação. Ela disfarçava bem, rindo como se eu estivesse lhe contando um
caso, num intervalo daquele momento de estudos. Às vezes, apontava para o
caderno, como se dissesse: “Vamos voltar aos estudos”. Restava-me suspirar,
sorrir e atender.
Chiara enfatizou, mais uma vez, que
Maria Goretti era especial porque permitia nossa ligação acontecer e que eu não
deixasse de pensar nunca: um dia aquilo se acabaria, ela (Chiara) iria embora
em definitivo, e Maria Goretti também seguiria uma vida normal. Casar-se-ia com
uma pessoa que não era eu, talvez nunca viesse saber integralmente do que
fizemos juntos, e eu, deveria ser maduro para entender tudo, sendo
compreensivo. O importante era eu saber que o nosso encontro definitivo (meu e
dela) aconteceria num tempo que não é esse e nem pode ser medido com as nossas
limitações.
Eu tentava aprender, tentava me educar para
compreender tudo aquilo, aproveitar as experiências de criança para elaborar os
fatos que aconteciam naquele momento, da minha adolescência. Não conseguia,
porém, deixar de pensar em Chiara numa dimensão na qual Maria Goretti não se
enquadrava. Por mais que eu as confundisse, por mais que na maioria das vezes
eu as associasse, a primeira estava sempre num plano acima da segunda. Defini
mesmo, à medida que amadurecemos nossos contatos que por Maria Goretti eu não
sentia (ou não deveria sentir) nenhum tipo de atração embora ela fosse bonita,
inteligente. Quando ela “era” Chiara, aí sim, meu corpo se eletrizava e eu não
queria que acabassem nunca os nossos encontros. Não conseguia pensar de outra
forma que não fosse essa.
Tudo que aconteceu depois daqueles encontros na igreja
e no corredor do Ginásio, teve a dosagem certa, os padrões definidos e um tempo
de se concluir. Conversávamos, a partir daí, sempre que podíamos, e foram
momentos nos quais eu aprendi muito. Chiara era extremamente sensível e ágil de
raciocínio; ser seu interlocutor nos anos em que convivemos me amadureceu
bastante. Com ela passei a ler muito mais, ela me apresentou autores, e até o
meu desenho se aprimorou. Quem nos visse ou nos ouvisse discutir, ficaria
assustado com a precocidade de nosso envolvimento intelectual. Houve mesmo
colegas de Ginásio comentando que competíamos e que éramos exibidos por mostrar
superioridade sobre a turma. Incrível que tenham pensado assim, porque minhas
intervenções só aconteciam nas disciplinas humanísticas. Desde essa época, eu
já mostrava uma incrível dificuldade com as ciências exatas, coisa que nem
Chiara, com seu afeto e nem mesmo Maria Goretti, com sua paciência, conseguiram
amainar.
Um dia, pela primeira vez depois do nosso tempo de
criança, Chiara me falou novamente que eu deveria ser cuidadoso com a memória
em virtude do livro que eu teria a incumbência de escrever. No encontro da
igreja ela disse que um dia autorizaria que eu o escrevesse. Nesse segundo
momento ela já considerava isso certo e praticamente isso virava, para mim, uma
missão. Fui atento ao seu pedido e lentamente fui gestando os dados que compilo
agora.
Nos nossos encontros de estudo, devo a ela, o fato de
ter conseguido passar no vestibular, em minha primeira tentativa quando o fiz
para o ano de 1970. Tive, é certo, tropeços no resto do Ginásio e no
Científico, pela inapetência com as exatas, fragilidade que sempre compensei
tirando ótimas notas em português. E era maravilhoso contar com o seu
incentivo, porque ela também gostava de escrever e o fazia muito bem.
É importante ressaltar que Chiara era mesmo dona de um
texto muito competente. Trazia-me os seus escritos, ou então os escrevia do meu
lado em alguns encontros mais longos que tivemos. Maria Goretti, por sua vez,
não tinha a mesma habilidade para a escrita. Não que escrevesse mal, mas nunca
se destacou, por exemplo, nas vezes em que compartilhamos a mesma sala de aula.
Está aí um dos motivos de ela aceitar estudar comigo em minha casa.
Pelos tropeços no Ginásio, e mais tarde no Científico,
o amigo leitor pode perceber que ela e eu não estivemos juntos na vida
estudantil o tempo todo. Maria Goretti, no geral, foi muito mais regular do que
eu. Formamo-nos no Ginásio, mas eu acabei tropeçando no primeiro científico,
fato que a fez adiantar-se um ano, tornar-se universitária antes de mim e nunca
mais sermos colegas de classe.
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