39- 1969: o
ano da Apollo 9 ou da invenção do “drible da vaca”
Em agosto de 1969, a morte do General Costa e Silva
confirmou o que já sabíamos: o vice-presidente Pedro Aleixo, um civil, foi
impedido de assumir o governo, e a Junta Militar provisória dava um recado
público: “ainda não era o momento de se entregar o poder”. Em seu lugar
assumiria Médici, “o pior e o mais cruel de todos os generais”. Com isso,
podia-se prever o que de fato seriam os anos setenta. Uma década com ar de fim
de festa. Os anos sessenta, com sua intensidade, ofereceram-nos uma tremenda
ressaca. Um amigo meu dizia que a sensação deixada pelos anos 70 foi de “copos
sujos, cinzeiros cheios, salgadinhos e “brigadeiros” esmagados esparramados no
tapete da sala, além de elepês arranhados e fora das capas: fim de festa”.
Enfrentei dificuldades nos estudos daquele ano.
Precisava estar pronto para o vestibular do ano seguinte, mas antes tinha que
vencer as barreiras de Física, Matemática, Química e até mesmo Biologia,
principalmente as três primeiras, que pareciam guardar em si códigos
indecifráveis. Sou uma pessoa, que consegue fazer apenas as quatro operações
básicas da matemática e, mesmo assim, nos dias de hoje, socorro-me de uma
máquina de calcular, na minha opinião um dos maiores inventos da humanidade.
Como um robô servil, ela me faz todas as contas, e eu não me preocupo.
Naquele ano, Afonso, meu professor de Biologia, teve a
coragem de considerar “sofrível”, um desenho meu de uma célula de tronco de
árvore, um “xilema”. Aquilo ao contrário de me abalar, cutucou positivamente
minha auto-estima. Mexeu com minha alma de artista.
Eu só gostava de escrever, escrevia muito e trocava
textos com Chiara e com meu amigo Juracy. Eu mantinha o entusiasmo que havia
adquirido com Arsênio Flávio, um grande professor, que lamentavelmente
perdêramos num acidente terrível. Sempre considerei dever a ele muito do que eu
sabia e do meu entusiasmo. Comecei por volta dos meus quinze anos a escrever
contos, poemas e até mesmo letras de canções para festivais de músicas, que
nunca realizamos. E era, como já disse, a época dos festivais. Praticamente
toda entidade estudantil mais ou menos organizada, promovia o seu. Em
Matozinhos planejamos vários, mas não os realizamos por falta de condições e de
grana. O Brasil talvez tenha perdido um letrista musical por absoluta falta de
oportunidade e seqüência.
Sessenta e nove foi também o ano da chegada do homem à
Lua. Uma surpresa e um privilégio para a minha geração. Minha mãe, até o fim de
sua vida, bateu o pé e garantiu ter certeza de que aquilo tudo havia sido um
embuste dos americanos. Morreu sem acreditar naquilo que ela e nós víamos na
televisão.
- Isso é um cenário! - ela dizia - Eles estão lá, no
país deles, fingindo que estão pousando na Lua. Deus não ia permitir uma coisa
dessas.
De qualquer modo, o tempo se encarregaria de me fazer
até dar razão à minha mãe. A partir de uma certa idade, tive também meus
momentos de dúvida. Aquela viagem, cheia de riscos, com as condições
tecnológicas frágeis que existiam na época, parece-me, hoje, algo como um vôo
de besouro: impossível.
Naquele ano, no entusiasmo juvenil, resolvemos, eu e
meus amigos homenagear Armstrong, Aldrin e Collins, os astronautas da viagem
histórica. Batizamos nosso time de futebol de salão, como “Apollo 9”. E foi com a camisa verde e
branca desse time que marquei um dos mais antológicos gols a que minha cidade
já assistiu: jogávamos contra um time de Vespasiano. Recuperei uma bola na
nossa área, enfileirei adversários, matei o último zagueiro com um drible de
corpo e esperei o goleiro sair, para tocar no canto. Pra falar a verdade, esse
gol foi uma raridade em minha irregular e sofrível vida esportiva. Inventei o
“drible da vaca”! Nunca joguei bem, reconheço. Por mais que eu me esforçasse,
as pernas não obedeciam ao que a cabeça pensava. Meu futuro no futebol
simplesmente não existia. Esse gol serviu apenas para alimentar minha
auto-estima. Pena que Chiara não estivesse lá para ter assistido. Estava V..., que,
por não entender de futebol, deu pouca importância ao fato. Meus amigos nunca
se esqueceram desse gol que marquei. Esses são amigos verdadeiros!
Estava, nesse ano, namorando V. Começáramos no
carnaval ao som de “Máscara Negra” e mantínhamos o namoro, embora sem muita
convicção, pelo menos de minha parte. Era uma tentativa que eu fazia de ser um
pouco independente de Chiara. Eu só não conseguia ser fiel. Não era ela que eu
queria. Fazia o tempo passar esperando a hora de ir embora: Belo Horizonte me
esperava.
Trabalhava, nessa época, numa distribuidora de gás de
cozinha (Vieira, Toledo & Cia. Ltda) durante o dia, estudava à noite até às
dez e meia e ficava na rua até a madrugada, zanzando, jogando conversa fora e
pensando na vida.
Marcamos, eu, Tanius, Aluízio e João, um encontro para
quinze anos depois, em 1984. Lêramos com entusiasmo “O Encontro Marcado” de
Fernando Sabino e prometêramos repetir a história do livro. Esse livro foi lido
com entusiasmo e a tesão intelectual, que era uma coisa muito presente àquela
minha geração. Quase o sabíamos de cor. O texto de Sabino virou uma espécie de
referência para todos nós. Maior alegria tinha Dona Carolina, nossa professora
de português, que nos havia recomendado o livro.
Fiquei sabendo, mais tarde, que apenas Aluízio e
Tanius compareceram ao nosso “encontro marcado”. Eu já estava no Sul e foi
impossível cumprir o trato. Não me perdôo até hoje por isso.
A década de sessenta, o grande período da vida de
minha geração, mostrava seus estertores. Ainda não sabíamos o que nos
reservavam os anos setenta, que estavam à nossa porta. Sabíamos que no Brasil a
sociedade se dividia: uma classe média emergente defendia o governo militar,
por interesses próprios, e as pessoas que pensavam sabiam que se andava em
terreno lodoso. Era difícil acreditar no que a imprensa oficial deixava passar
para a leitura diária. Sabíamos, e tínhamos certeza, que nos porões da
ditadura, muitos jovens como nós morriam torturados covardemente. Entre eles,
alguns conhecidos de quem nunca mais tive notícias.
Rompi com V... por volta de setembro, porque descobri
(suprema ironia!) que ela me traía, e senti-me tentado a virar hippie e cair no mundo. Senti vontade de
viajar, de me isolar no meio do mato, tive vontade de tudo, até do que não era
possível. Meus cabelos cresceram até os ombros, e a velha e conservadora
Matozinhos se assustou com a minha nova aparência. Tudo confirmava que minha
vida estava, de fato, mudando. Ainda não sabia se era para melhor ou para pior.
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