23- O REENCONTRO
Reencontrei Maria Goretti. Afinal, crescíamos, e, como
bons adolescentes, seguíamos o velho código das relações entre meninos e
meninas dessa idade: não nos falávamos, não nos cumprimentávamos e fingíamos
descaradamente nunca termos nos conhecido um dia. Ter dividido a mesma carteira
escolar, então, era um assunto que havia sido apagado definitivamente de nossas
vidas. Na verdade, mais que as meninas, nós, os meninos, éramos terrivelmente
impacientes: achávamos que elas eram um bando de chatas, histéricas e melosas.
Isso foi no começo das aulas no Ginásio Nossa Senhora de Fátima. Evitávamos, ou melhor, mais ela do que eu,
passar perto um do outro para não termos de nos cumprimentar, até que um dia decidimos
dar uma trégua naquela bobagem de fingir que um e outro não existiam.
Havia, nesse tempo, é certo, situações
inevitáveis, como quando René Avelar, nosso professor de francês, pediu que
lêssemos juntos um pequeno diálogo contido no livro, em que uma moça comprava
jornais numa banca de revistas: ela era a moça, e eu, o jornaleiro. Foi
estranho, porque, não sei se por nervosismo ou cumplicidade, começamos a rir e
toda a sala de aula riu conosco, inclusive René, à época, um sisudo professor.
Aquilo quebrou o gelo entre nós, fez com que a gente se permitisse de vez em
quando trocar uma ou outra palavra, mas foi como se não houvesse entre nós um
passado ou nunca tivéssemos nos conhecido antes.
Tive mesmo várias vezes vontade de
perguntar a ela por Chiara, mas nunca tive coragem. E, na verdade, sua
expressão era de que nunca havia acontecido aquele fato estranho entre nós.
Parecia que aquilo havia sido definitivamente apagado da sua vida ou que ela
talvez nem tivesse percebido que tudo acontecera, ao contrário da minha vida,
que trazia aquela marca, aquela relação, aquele nome, como uma tatuagem
inapagável.
Em 1961 nos mudamos, eu e minha família, para a nossa
esperada casa nova, toda nossa, toda pronta, bem perto da Praça da Matriz.
Estávamos felizes em nosso novo cantinho, principalmente meu pai e minha mãe,
pertinho da igreja, mais perto de Deus, como minha mãe dizia. Eu tinha uma
intenção: reencontrar e ficar mais perto de Chiara.
E Chiara reapareceu, se é que se pode dizer assim, através
de Maria Goretti, na última semana daquele ano. Confirmava-se assim o novo modo
de ela aparecer, usando (e eu não entendia como) o corpo de Maria Goretti. Esse
ressurgimento aconteceu antes que começássemos, no ano seguinte, o Ginásio.
Apareceu como uma prévia. Reapareceu rapidamente, apenas como se fosse para
confirmar a veracidade dos sinais de meus sonhos. Reapareceu para dizer: “Estou
aqui. Não me esqueça. Tenha paciência”. Sem testemunhas, como ela sempre
preferiu. Tão rápido quanto daquela vez, dos nomes no caderno, no Grupo
Escolar. Só que agora aquilo tudo me pareceu mais veraz. Eu tinha praticamente
a certeza de que, quando recomeçássemos, teríamos um bom tempo para ficar
juntos, ou, pelo menos, o que eu podia aceitar e me conformar como “estar
juntos”.
Apareceu num finalzinho da tarde, quando escurecia
lentamente, e o céu tinha aquela cor mágica com um resto de luz do dia: a cor
dos momentos dos meus sonhos. Encontrei-a num supermercado. Fazíamos compras
para nossas mães. Saímos juntos. Por coincidência. Caminhávamos quase
paralelos, e não foi minha a iniciativa de puxar conversa. Eu, pra dizer a
verdade, não acreditava mais que houvesse a continuidade da relação delas
duas. Ela foi a primeira a falar:
- Fiquei sabendo que vamos ser colegas de Ginásio.
- Sim, Maria Goretti -, respondi.
- Não sou Maria Goretti... agora. - ela disse,
enquanto se cercava do suave perfume de gardênia.
Senti uma pontada na boca do estômago, meu coração
disparou, e o perfume flutuava no ar. Assustei-me porque me desacostumara com a
presença dela. Comecei a suar frio, e minha pressão baixou. Pálido, encostei-me
a um poste e ela disse:
- Calma, sou sua amiga. Não quero fazer mal pra você.
Eu sabia que não. Fui pego de surpresa porque fazia
tempo que aquilo não acontecia. Aos poucos fui me recuperando e sentei-me um
pouco no banco da praça. Eu a olhava e via dois rostos se confundindo: o de
Maria Goretti, nítido, com seus olhos brilhantes, sobrancelhas grossas, lábios
e dentes bem feitos e o de Chiara, de minhas lembranças de infância, mas
obscurecido por uma espécie de nuvem, sem nitidez. Lentamente aquela fusão se
estabilizou, ficando o de Maria Goretti, apenas com um detalhe que depois seria
reconhecidamente típico e identificador: o lábio inferior sendo levemente
mordido, como um jeito próprio, charmoso, quase um sestro. Ela me olhava e
parecia um pouco assustada com a reação de surpresa que eu tive.
- Calma! - ela disse novamente.
Nelmo barbeiro, um conhecido, passou, viu minha
palidez e perguntou se eu precisava de ajuda. Ela, disfarçando, disse que me
vira empalidecer e que estava ali também para ajudar. Fiz um sinal para Nelmo
dizendo que eu estava bem e que tinha sido um mal passageiro, que ele não se
preocupasse. Ficamos ali, os três, mais alguns minutos, e ela se despediu,
descendo a rua pra levar as compras para sua mãe. Antes, virou-se e me sorriu.
Confirmei, por intuição, que quem me sorria ainda era Chiara.
Depois daquilo, fui para casa atordoado. Naquela noite
não jantei e custou-me pegar no sono na hora de dormir. Não conseguia parar de
pensar no que havia acontecido.
Por volta de fevereiro começou a crescer em mim a
expectativa de minha nova vida como ginasiano. Havia, mais ainda, um sinal de
que Chiara poderia surgir a qualquer momento e eu dividia minhas reações: às
vezes queria muito, às vezes temia. Queria, porque me lembrava de instantes
bons de meus tempos de infância quando ela se encontrava comigo em minha casa;
temia, porque me tornava adulto, começava a medir melhor as coisas e a raridade
da situação que eu vivia, diferente da vida de todos que eu conhecia, confesso,
me perturbava, me dava insegurança. De certo modo incomodava-me também que
houvesse uma outra pessoa envolvida. Minha relação com Chiara mudara por causa
disso. Não entendia por que deveria ser diferente do que era em meu tempo de criança.
Mesmo assim, ansiei por cada minuto à frente do meu tempo, porque vencê-los
significava me aproximar de novo da possibilidade de revê-la; continha-me às
vezes, tentando não pensar naquilo por medo do desconhecido.
As aulas começaram na primeira semana de março, numa
noite escura e cheia de ventos, depois de um temporal. Minha mãe durante o
jantar, chegou a sugerir que eu ficasse em casa, mas não resisti. Peguei minha
pasta e fui para o meu primeiro dia de aula.
Ainda seria necessário um mês e alguns dias para
Chiara falar comigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário