segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

25- As estranhas luzes



25- AS ESTRANHAS LUZES




Pode-se dizer que 1962 foi o ano do retorno de Chiara, uma vez que o acontecido no ano anterior, à saída do supermercado, praticamente não podia ser contado, por ter sido muito rápido e, ao contrário do que eu pudesse ter pensado, não teve continuação, nos meses seguintes. Em 62 ela voltou, de forma lenta, mas progressiva, até o fechamento do ciclo em 1978. Essa retomada de contato aconteceu numa tarde quando eu menos esperava e de uma forma muito breve, que foi, no entanto, suficiente para eu acreditar que tudo voltaria a ser como era antes.
Cheguei mais cedo ao Ginásio. As aulas começavam às sete da noite, e fiquei sentado num murinho perto da sala, à espera do sinal de entrada. Lembro-me de um calor intenso, da fumaça do forno do “Cachorro-Quente” enchendo o ar com cheiro de pão novinho e de ameaça de chuva, com pingos esparsos de quando em quando. Maria Goretti chegou, me deu um “oi” educado e entrou na sala para guardar seus cadernos. Quando eu menos esperava, ela veio e se sentou no murinho, do meu lado, dizendo com um tom de voz revelador:
- Beto... vou te chamar assim agora: Beto.
Junto com ela, o inconfundível perfume de gardênia misturando-se aos ares de calor e de ameaça de chuva. Eu a olhava falar e parecia-me que ela o fazia em câmara lenta. Via o rosto de Maria Goretti, via o movimento de seus lábios e parecia-me maior o brilho do batom suave sobre eles. Via-a como se meus olhos fossem capazes de enxergar mais que o normal: via a textura da pele, os fios de cabelo detalhados, o brilho de seus olhos e a pupila castanha tendendo para um leve esverdeado. Ouvia a sua voz com uma nitidez absoluta e sentia aquele perfume bom me inebriando. Via Maria Goretti, mas sentia Chiara, ali, do meu lado. Grossos pingos de chuva começaram a ribombar no telhado, corremos para o varandão do Ginásio, e a suavidade de sua voz, obscureceu tudo:
- Que dia do mês é hoje? - ela perguntou.
- Dezesseis de março, sexta-feira. - respondi, e parecia que a minha voz não tinha a mesma intensidade da dela, enquanto a chuva aumentava e o vento balançava a copa de um velho carvalho do pátio. Um relâmpago rabiscou o céu cinza-escuro. Quase noite.
Ela riu e disse que não havia perguntado o dia da semana, porque isso ela sabia. Aquela voz, à medida que nossa conversa se ampliava, também tomava mais vulto, dando-me cada vez mais a certeza de ser ela a pessoa por quem eu procurava há anos. Continuando - e, me arrepio contando isso aqui agora -, ela me disse, enquanto a chuva, rápida, amainava:
- Domingo é dia dezoito. Sei que você vai a Sete Lagoas. Vamos nos ver lá, no finzinho da tarde.
Tentei perguntar como ela podia saber, tentei chamá-la de Chiara, mas alguma coisa me deteve, perdi a voz, suei frio. Quando me recompunha, o sino de começo das aulas, bateu. Ela sorriu e falou bem baixinho: 
- Não esqueça... domingo. Esteja pronto.- e entrou para a sala na minha frente. Naquela noite não falou mais comigo, e eu perdi totalmente a minha atenção na aula, esperando e implorando que ela se voltasse um pouco, olhasse para mim e me desse algum sinal. No recreio tentei abordá-la, mas não consegui, porque ela se juntou a umas amigas. Quando consegui chegar perto, a voz de Maria Goretti, ou o seu jeito de falar, havia voltado. Sumira o perfume de gardênia. Não era, e eu devia saber disso, nem Chiara, nem aquela era a sua voz.
Engraçado que a maioria das datas em que houvesse acontecido algum encontro com Chiara tenham sido tão marcadas. Praticamente me lembro de todas, quase sempre por algum tipo de associação que acabei fazendo ou mesmo pelo fato de que ela tenha feito questão de deixar alguma forma de registro. Confesso que não fazia, naquele dia, a mínima idéia de que eu de fato fosse a Sete Lagoas naquele domingo. Achei muito estranho ela ter falado aquilo e já previa um erro dela, o primeiro, para acreditar que nossa relação não era assim tão sobrenatural. Vã ilusão!
No domingo, depois da missa da manhã, meu pai perguntou-me se eu queria ir com ele ao futebol em Sete Lagoas, à tarde, onde o Cruzeiro, nosso time, jogaria um amistoso com o Democrata, time daquela cidade. Senti o mundo rodar.
E coisas surpreendentes aconteceram: um encontro com Chiara e estranhas luzes no céu.
Mesmo considerando o quanto é difícil contar isso agora, com a ótica de adulto, visto ter sido um fato passado há tanto tempo, as coisas me vêm suficientemente claras na memória. Mesmo que possivelmente bordadas por um ou outro detalhe valorizador, a essência é que conta: os dois fatos foram dos mais surpreendentes de minha vida! Um encontro com ela, pela ótica do plausível não era tão absurdo assim. Implica-me pensar como é que ela sabia? O caso das luzes do céu – muito tempo mais tarde saberia não ter nenhuma relação com o encontro – repetiu o que eu já vira, uma vez, numa Semana Santa do passado, no bambuzal de Zé Fonseca.
Conforme disse, fomos ao jogo: meu pai, eu, Salatiel e José Reis, amigos de meu pai, Calete (primo de minha mãe), e Antônio Vasconcellos, dono do carro que nos levou: uma Rural Willys. Vivos, hoje, só eu e Antônio Vasconcellos, que não tenho certeza de que tenha visto o que vi no céu. Meu pai, com certeza viu, mas nunca admitiria isso, porque apesar de afável e carinhoso, era também sistemático e extremamente racional.
Pra contar com mais detalhes, Sete Lagoas dista vinte e cinco quilômetros de Matozinhos, algo como vinte minutos ou meia hora de carro, dependendo do trânsito.         Fomos ao velho “Duarte de Paiva”, campo do Democrata. Era a primeira vez que via o Cruzeiro jogar. Havíamos sido campeões em 60 e 61. Mussula, Massinha, Vavá, Dilsinho e Geraldino. Amaury de Castro e Rossi. Nerival, depois Antoninho, Elmo, Dirceu Pantera e Raimundinho, era o time-base daquele ano. Fazia contra o Democrata uma espécie de jogo de pré-temporada. O Democrata era, nessa época, um dos mais tradicionais times do interior mineiro, sempre fazendo bom papel nos campeonatos estaduais. Era quase invencível em seu campo. Vencemos por 3 a 1, e tudo começou a ficar surpreendente no momento do terceiro gol, de Elmo, nosso centroavante, cobrando uma falta com um chute fortíssimo. Enquanto comemorávamos, um homem negro, de chapéu de palha e camisa do Bela Vista (rival local do Democrata) passou por nós vibrando, tocou no meu ombro, piscou-me o olho e disse baixinho:
- Hoje à noite, olha pro céu, do lado esquerdo.
Aquilo tudo me deixou confuso. Empalideci, meu pai perguntou-me o que eu estava sentindo e me levou ao bar para tomar uma água. O jogo acabou tarde, e esperamos a multidão sair para evitar o trânsito engarrafado. Alguém que estava conosco precisava entregar uma encomenda no centro de Sete Lagoas, e Antônio Vasconcellos concordou. Fomos até a uma sorveteria chamada Nevada, local da entrega. Não sei por que, tudo isso demorou um pouco, e descemos então do carro. Resolvemos fazer ali um pequeno lanche. Quando entramos no salão da sorveteria, as primeiras pessoas que eu vi foram Maria Goretti e seus pais. Ela me sorrindo, como se me dissesse: “Não falei?”. Meu pai, conhecido do pai dela, sentou-se numa mesa perto e eu fiquei abobado sem saber o que fazer ou o que conversar. Ela (até aí eu não sabia se Chiara ou Maria Goretti) me passou um guardanapo de papel quando engasguei com um guaraná. No guardanapo, o perfume de gardênia; em seu rosto, um sorriso e um leve morder de lábios. Ficamos lá meia hora, quarenta minutos, talvez. Despedimo-nos, e ela me sorriu mais uma vez. Quando tomamos a estrada para Matozinhos, vim naturalmente grudado na janela, lembrando-me do homem do campo e olhando o céu do lado esquerdo, morrendo de medo e de curiosidade com o que poderia aparecer.
E foi nas proximidades de Prudente Moraes que a coisa aconteceu: quatro pontos luminosos no céu, passando de verde intenso a vermelho, depois lilás e amarelo, faziam uma coreografia matematicamente perfeita, em movimentos de espiral. Surpreendentemente, ninguém na Rural Willys parecia ver o balé das luzes no céu. Salatiel e Calete discutiam o jogo, José Reis cochilava e Antônio Vasconcellos prestava atenção na estrada. Cutuquei o meu pai ansioso para dividir com ele aquela visão e ele olhou para o céu como se não enxergasse aquilo tudo. Durou, mais ou menos uns cinco minutos aquela coreografia e, de repente, como num passe de mágica, sumiu, deixando o céu para as estrelas, a lua cheia, imensa, e um avião que passou com suas luzes inconfundíveis.
E não era aquela a primeira vez que isso me acontecia: anos atrás eu havia tido a mesma experiência naquele dia de uma Semana Santa. Não ficaria, entretanto, só naquilo. Até então tudo fora uma espécie de ensaio, modo de preparação que amenizou o impacto dos grandes acontecimentos que vieram em seqüência. 
É difícil abrir em público este assunto, até porque também tenho fama, entre meus amigos, de ser uma pessoa racional, como o meu pai. Mas é inevitável dizer, contar tudo neste livro, relatar todos os fatos com a exatidão maior possível, sem querer absolutamente exigir de quem leia, credibilidade para os acontecimentos, que são, com certeza, surpreendentes. De qualquer modo, só o fato de eu estar aqui me dispondo a contar coisas assim, tão inexplicáveis, e assumidamente acontecidas comigo, já é motivo suficiente para chamar a atenção.
Começo contando que a impressão que tive é a de ter sido abduzido naquela noite, enquanto dormia... Abduzido é o único termo que encontro para explicar o fato, a partir do momento em que uma luz forte, intensa, irrompeu a escuridão do meu quarto como se rasgasse as venezianas da janela e, sem que eu pudesse evitar, arrastou-me para fora, para o quintal, nos fundos de minha casa, naquela madrugada. Lembro-me da atração irresistível, do zumbido intenso em meus ouvidos, do longo calafrio viajando em toda extensão de minha espinha, do coaxar das rãs, dos barulhos dos grilos da noite apagando-se aos poucos... Não sei quanto tempo passou, sei que houve uma espécie de desmaio, desligamento da realidade e perda da noção do tempo. Quando recuperei a consciência, estava na frente da casa, do lado de fora do murinho da entrada. Eu estava sentado numa pedra, a fachada de nossa casa pareceu-me gigante, e o frio da madrugada me fez tomar consciência de que eu estava do lado de fora. Reconheci cada detalhe, confirmando, pela exatidão de tudo, que não era um sonho. Estavam ali, os canteiros de flores, o banco do alpendre, a casa de maribondos no ângulo da laje, os dois degraus de ladrilhos que levavam até o interior do alpendre. Entrei, abri a porta, e ela estava encostada. Fui até a minha cama, passando pelas outras peças da casa. Meus pais e meus irmãos continuavam dormindo. Deitei-me e tive um resto de noite de sobressaltos.
Durante muito tempo dei para mim mesmo a desculpa de ter sido atacado por sonambulismo e esforcei-me por esquecer o assunto, não contando para ninguém. E eu ainda não havia feito doze anos.

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