quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

21- Chiara de volta?



21- CHIARA DE VOLTA?



Tive um sonho revelador no dia 12 de março de 1961, um domingo. Tenho esse sonho descrito em um caderno que guardo até os dias de hoje, como a maioria das recordações palpáveis que me lembram Chiara. Impressiona a inteireza do sonho, o desenvolvimento linear e sem desvios, fazendo-me acreditar que aquilo era mesmo um aviso. Encontramo-nos, no sonho, em um grande salão. Eu vestia um terno azul e olhava um jardim de inverno cheio de pássaros e flores. Nesse jardim de inverno, imenso, um labirinto de arbustos modelados. Depois, silenciosamente, ela chegou e me cobriu os olhos com as mãos. Reconheci-a. Deu-me um rápido beijo no rosto, pegou a minha mão e conduziu-me para sentar com ela numa poltrona de veludo vermelho. Serviu-me delicadamente um chá e disse que estava próximo o dia em que voltaria de novo para ser minha companhia. Seria por um tempo, indefinido ainda, mas seria bastante para realizarmos juntos muitas coisas. Perguntei-lhe quando, e ela disse que eu tivesse calma, na hora certa eu saberia, deveria ter paciência.
        Depois daquela noite acreditei que a teria de novo. Tive ainda alguns sonhos curtos em que ela reafirmava que voltaria. Preparei-me ansioso para recebê-la.
        Naquele ano de 61, nasceu minha primeira sobrinha, Elizabete, filha de Laura e Tomaz. Transformou-se imediatamente no xodó de minha casa. Primeira neta e primeira sobrinha; era a empolgação de todos.
        No ano seguinte, em maio, Tomaz resolveu levar a filha a São Paulo para que seus pais a conhecessem. Fui nessa viagem com eles: a minha primeira grande viagem. Fui tranqüilo, porque consultei Chiara em um outro sonho, e ela me tranqüilizou: disse que eu fosse, porque ainda não estava no tempo de ela voltar. Senti-me importante fazendo aquela viagem. Foi a primeira vez que eu fiquei tanto tempo (quinze dias) longe dos meus pais e de Matozinhos. Eu, que era empolgado com o progresso brasileiro, mesmo sendo um pré-adolescente, fiquei mais ainda quando conheci São Paulo.
        Durante a minha estada em São Paulo, sonhei três vezes com Chiara. Senti-a perto muitas vezes, uma vez, inclusive, como se ela fosse uma menina que eu vi numa sorveteria em Piedade, a terra de Tomaz. O que me fez ter essa impressão, quase certeza, foi o repentino aroma de gardênia no salão da sorveteria. No futuro eu sentiria muitas vezes essa sensação em outras pessoas, reconhecendo minha amiga numa específica expressão do rosto. Como se ela aparecesse disfarçada, e só eu pudesse perceber...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

20- Novas experiências



20 – NOVAS EXPERIÊNCIAS



       

Era uma sensação boa morar no centro da cidade. Tudo era muito diferente do jeito bucólico da vila da Usina. Não que Matozinhos fosse uma cidade grande naquela época, aliás, até hoje não o é. Em 1960 deveria ter uns nove, dez mil habitantes apenas, o que fazia todo mundo se conhecer, haver a paz de se deixar as portas das casas abertas e todos, de alguma maneira, serem amigos. O chamado centro da cidade distinguia-se do resto por conter o prédio da prefeitura, a Igreja Matriz Bom Jesus de Matozinhos, uma das mais bonitas que eu conheço, o prédio dos correios, um sobradão colonial onde ficava o fórum, um pequeno hotel, duas agências bancárias, algumas lojas e alguns bares. Havia a praça, boa para se namorar, com um coreto de pedra e um movimento intenso de carros, porque a estrada federal passava no centro da cidade.
       
        De todos na minha casa, Christiano era o mais popular em Matozinhos. De certo modo eu o invejava por isso. Aliás, influências de meus irmãos nunca me faltaram: com Zezé, aprendi o espírito aventureiro. Ele foi o primeiro a tentar horizontes maiores na capital; de Luciano, aprendi a vocação para o desenho, algumas malandragens da vida e a gostar de cinema. Tudo o que aprendi a respeito dessas coisas eu devo a ele. Com Lúcio, aprendi a gostar das cartas, de uma mesa de pôquer, buraco, canastra ou pif-paf. Tudo sem exageros, é claro, apenas pela excitação de ganhar ou perder, sem extravagância, jogando com amigos.
        Incomodou-me, numa certa época, meus irmãos vigiarem demais os meus passos, como uma superproteção. Mas hoje, reconheço, aquilo tudo era para o meu bem.
        Viver em Matozinhos naquela época não demandava nenhum tipo de perigo. O máximo de animação que havia, de vez em quando, era uma ou outra briga em algum baile contra os rapazes de Sete Lagoas ou Pedro Leopoldo, que vinham nas nossas festas dançar com as moças da cidade.
        Nunca participei de nenhuma dessas brigas, embora tivesse vontade. Era engraçado: quando acontecia de os matozinhenses brigarem com os pedro-leopoldenses, por exemplo, recebiam sempre apoio e reforço dos sete-lagoanos. Quando brigavam com os de Sete Lagoas, eram os de Pedro Leopoldo que entravam a nosso favor. Impressiona como tudo passa: é claro que já não existem mais os bailes como antigamente, mas houve um determinado momento em que as brigas foram rareando, rareando, até acabar. Talvez aqueles contendores tivessem envelhecido, e as novas gerações que os sucederam não se preocupassem em dar continuidade àquela rivalidade tola entre cidades. Houve uma vez, é verdade, que tive uma enorme vontade de começar uma dessas brigas. Era um baile de debutantes, em 68, acho. Eu estava numa mesa com N, a quem eu fazia uma paquera leve, e um aspirante fardado do CPOR tentou tirá-la para dançar. Eles estavam no baile porque alguém teve a idéia de convidá-los para a primeira valsa das debutantes. Nós, os rapazes da cidade, achamos ridícula aquela coreografia marcial na valsa “Danúbio Azul”; as meninas suspiraram emocionadas. Quando ele veio com aquele garbo forçado de militar, quase meti a mão na cara dele na cara, chegando mesmo a me levantar para fazer isso. Contiveram-me alguns amigos, N reprovou a minha atitude, e eu, além de perdê-la, não consegui dar aquele soco pretendido.
        E é uma característica do matozinhense ser apaixonado, ter esse furor patriótico de encarar a cidade como se ela fosse uma nação. Uma vez, muitos anos depois, no comecinho da década de 70, houve um programa na TV Itacolomi, das Emissora Associadas, chamado “Mineiros frente a frente”, no qual as cidades disputavam a cada semana um determinado número de provas, com caráter eliminatório: quem perdesse ficava fora. Nunca vi empolgação maior em nossa cidade. Vencemos Ituiutaba, Ipatinga e Juiz de Fora, cidades, todas elas, muito maiores que a nossa. Éramos uma espécie de Davi enfrentando Golias. Fazíamos muita festa, íamos em caravana, dezenas de ônibus para o auditório do Palácio do Rádio, de onde o programa era transmitido para todo o estado. Isso animava nosso “fervor patriótico”!

        Toda essa agitação dos anos 60 foi fermentada no finalzinho dos anos 50, na agradabilíssima Matozinhos que eu descrevi. Havia um clima de entusiasmo no Brasil inteiro por nossas conquistas como a Copa do Mundo na Suécia, o sucesso internacional da Bossa Nova, o começo de nossas experiências mais criativas e Brasília, quando de sua inauguração, o nosso grande orgulho. Eram os fantásticos “anos dourados”. Juscelino, o presidente, mesmo contestado, em alguns aspectos era considerado um homem moderno, arrojado, criativo e cosmopolita. Naquele tempo, começamos a acreditar que o Brasil tinha um grande futuro como nação. Pena que os militares, que tomaram o poder anos depois, engessaram esse progresso. Esse progresso transparecia nos primeiros carros nacionais que minha geração conheceu. Eu me encantava com os Gordini, Dauphine, Vemaguete e Aero-Willys, produtos pioneiros da indústria nacional. Eu era fanático pela leitura semanal da revista O Cruzeiro, que me atualizava com as notícias do mundo. E, por incrível que pareça, eu talvez fosse a única pessoa do Brasil que gostava dos “jornais” antes dos filmes, o célebre “Canal 100”. Traziam as notícias do Brasil, mostrando os nossos focos de progresso. Tudo aquilo me fazia ser cada vez mais apaixonado pelo Brasil.
       
        Matozinhos experimentava a grande mudança: recebia uma fábrica mais pujante e moderna, a fábrica de cimento. A cidade tornava-se mais cosmopolita pela convivência com os franceses diretores da fábrica. Talvez fosse, nessa época, a cidade mineira onde mais se falava francês, língua aprendida com entusiasmo no Ginásio, por causa de nossos ilustres visitantes. O futuro se encarregaria de provar que o francês que eu aprendi viria a ser muito útil, anos depois, quando encontrei Brigitte. Essa pujança de progresso trouxe também muitos forasteiros para a cidade, visto que a nossa fábrica de cimento era uma das principais abastecedoras da construção de Brasília, que se estenderia ainda por muitos anos daquela década. Com esses forasteiros vieram também suas famílias, a maioria de Andradas, cidade do sul de Minas. Essas famílias trouxeram também seus filhos e filhas, principalmente as meninas, algumas muito bonitas e com um curioso e simpático sotaque de influência paulista, carregado de “erres”. Eu namorei uma delas e gostei muito.
        Naquela passagem de 1960 para 61, uma coisa também me animava: comecei a sonhar constantemente com Chiara. Imaginei, assim, com aqueles sonhos, que aquilo fosse um sinal de sua possível volta. E isso se confirmaria, para minha alegria. Era uma questão de ter paciência.

19- Novos rumos



19- NOVOS RUMOS




No começo daquele ano, 1960, como se pressentissem, meus pais e meus irmãos começaram a aventar a possibilidade de, num esforço conjunto familiar, construir a nossa casa definitiva. Minha mãe sempre tivera esse sonho: uma casa que fosse dela, de papel passado e onde ela pudesse plantar suas árvores frutíferas pensando nos netos que teria no futuro. Houve então um grande entusiasmo, um esforço concentrado de todos, e à custa de sacrifícios, começamos a levantar as paredes de nossa casa: tudo muito simples como a nós era possível fazer. Acostumávamo-nos à idéia de mudar para uma casa menor e de menos conforto que a da Usina.
Em outros aspectos, a vida começava a melhorar aos poucos: Luciano passou a trabalhar no Banco Mercantil, Lúcio e Christiano, na montagem da nova fábrica, depois de tentarem, sem sucesso, trabalhar em Belo Horizonte.
Eu, tendo completado o curso primário, fiz a “admissão”, cursinho necessário e preparatório de seis meses, naquele tempo obrigatório para se entrar no Ginásio. Alguma coisa já me dizia nessa época que minha vida ia mudar.
Nossos planos de trocar o lugar onde morávamos pela parte alta da cidade representaria mudanças. Uma nova etapa começaria, e eu passei a me sentir mais maduro, só de pensar e fazer planos, grandes planos para a minha vida: ginásio, científico e universidade, ainda um sonho distante, mas não impossível. Apenas esperava, ansiosamente, o momento em que nós, em nossa casa nova, pudéssemos ter também um aparelho de televisão, desde que eu me encantara assistindo uma vez, da rua, pela janela, a um programa indecifrável (por ter sido visto de longe) na casa de Seu Sanchez . 
        Tudo seria novidade a partir da casa nova e do centro da cidade: novos amigos, proximidade com os meus primos que moravam naquela parte da cidade, e com as meninas que cada vez mais eram meu interesse, e a confirmação de uma ausência. Nunca mais, desde 58, naquele rápido acontecimento com Maria Goretti na escola, eu havia tido qualquer notícia de Chiara. Quase perdera a esperança de reencontrá-la. Salvaram-me os sonhos a partir de uma certa época, que reativaram as expectativas. Não tinha, no entanto, certeza de que a reencontraria, mesmo mudando-me para perto de onde Maria Goretti morava.
       
        Nossa casa foi erigida aos poucos. Primeiro uma meia-água com quatro peças, e mais tarde a outra metade, em sentindo contrário, formando as duas águas. Nessa primeira fase, da construção pela metade, tivemos o batismo de passar nela uns dias: os últimos dias do jubileu de 1960. Meus pais, católicos, ficaram felizes. Eu e meus irmãos, cada um com seu interesse, felizes também por estarmos morando, mesmo que provisoriamente e só aqueles dias, no centro.

        Eu comecei a sentir que minha vida tomaria um novo rumo...


terça-feira, 29 de janeiro de 2013

18- Prenunciando o mundo dos adultos



18- PRENUNCIANDO O MUNDO DOS ADULTOS




Naquele tempo, entre nove e dez anos, por mais que possa surpreender as pessoas de hoje, que pensam que fosse ao contrário, nós, os meninos, já pensávamos em imitar os nossos irmãos mais velhos, como, por exemplo, em seus atos de fumar, namorar e ter uma bicicleta. Pelo menos, segundo me lembro, é como pensávamos, eu, Antônio Dupin, Antônio Fernando, meu primo e outros meninos da minha idade.
O tempo era das famílias grandes, e irmão homem era sempre uma referência masculina, maior mesmo que o pai, por estar mais presente no dia-a-dia, enquanto propositor de brincadeiras e até mesmo de certos desafios.
Já parávamos na calçada, na praça em frente à igreja, para ver as meninas passando depois da missa e antes do cinema, fazendo tudo que aprendíamos com os nossos irmãos. Exagerávamos no Gumex, que era uma pasta gordurosa para assentar o penteado dos cabelos, e alguns, mais precoces, já experimentavam até fazer a barba, na esperança de que, cortando, os pêlos prematuros pudessem se transformar em barba de verdade. Eu já experimentara fumar. Fizera várias tentativas, por influência de Luciano, meu irmão que já fumava e tentou me ensinar uma vez. Veja-se aqui a má influência, embora de uma forma não intencional. Não se falava, à época, dos males que o cigarro fazia. De outra vez foi através de M, uma menina mais velha que insistia em me ensinar a beijar e que também insistia em me ensinar a fumar. A princípio, não gostava muito, engasgava com a fumaça e ficava com um gosto horrível na boca, mas aquilo era quase uma obrigação masculina. Ou melhor, pode-se dizer, quase uma obrigação de adulto, porque muitas mulheres também fumavam, só evitando fazê-lo em lugares públicos. Uma vez beijei M depois que ela havia fumado. Não gostava do gosto de sua boca com o hálito de tabaco.
Desde pequenos, num gesto mais inocente, brincávamos de fumar talo de chuchu, que era um galho ou extensão da folha do chuchuzeiro. Por dentro esse talo era oco e quando seco funcionava como um cigarro. Botávamos fogo numa ponta e aspirávamos a fumaça, imitando os adultos.
Chiara uma vez me repreendeu no quintal de minha casa quando me viu fumando aquilo. Disse-me que eu não deveria nunca aprender a fumar, porque depois seria muito difícil abandonar o vício. Isso, quando eu tinha seis anos, na época que ela brincava comigo. Disse-me com sabedoria de adulta, que o cigarro fazia muito mal à saúde. O futuro se encarregaria de dar razão a ela: fumei por trinta e cinco anos, às vezes compulsivamente, e tive uma grande dificuldade para derrotar a dependência.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

16- Os primeiros namoricos



16- OS PRIMEIROS NAMORICOS





Já tínhamos nossas namoradas na escola, ou pelo menos pensávamos que tínhamos: a minha se chamava E..., e como eu era o mais corajoso de todos, até já a havia beijado. Usei o que eu aprendera com M, aquela menina mais velha, que insistiu em me ensinar e o fiz de maneira que os meus colegas que também tinham suas namoradas pudessem ver. Queria causar inveja! Foi tudo muito rápido, no cantinho do pátio, no finalzinho do recreio. Peguei-lhe a mão, meio forçado, reconheço, chamei-a num cantinho do muro para falar comigo e tasquei-lhe um beijo, de língua, como eu aprendera com minha vizinha mais velha. Ela tentou se livrar de mim com um safanão, mas eu era mais forte e a mantive ali, no beijo, por alguns segundos convincentes. Ao contrário do que pensei, depois ela saiu calminha como se tivesse gostado. Apenas arregalou bem os olhos e ficou vermelha.
Fiz aquilo mais por necessidade de afirmação, porque, na verdade, eu não gostava de E... para ser minha namorada. Eu estava, naquela época, envolvidíssimo com a perspectiva de Maria Goretti permitir que Chiara voltasse a falar comigo. Fora isso, quem eu namoraria de fato, sem pestanejar, se ela aceitasse, seria Teresa Cristina Saad, uma menina que morou em minha cidade por um tempo, estudou também no nosso Grupo, despertou o olhar dos meninos e de quem, depois, nunca mais tivemos notícias.
Beijar E... serviu para fazer o grupo me respeitar. Eu passava com aquele ato a ser uma referência de comportamento para os outros meninos, praticamente desafiava-os a fazer o mesmo com suas namoradas, se tivessem coragem. Não soube de nenhum que o tenha conseguido naquela época. E... gostou, porque depois daquilo, sempre escondidos, trocamos vários beijos. Ao final de cada sessão ela sempre saía com seus grandes olhos abertos e rubor nas faces, como da primeira vez. O ruim de tudo é que um dia eu perdi o interesse e terminamos o namoro. Chamei-a no pátio e disse pra ela que não a queria mais como namorada. Ela, a partir daí, ficou de mal comigo.


17 - O fim da usina




Neste texto, é bom que se saiba, as datas não correspondem com exatidão a história real nem os fatos transcorreram necessariamente na ordem descrita e com as características narradas. O que narro como acontecido no ano de 1960, na realidade não transcorreu tão rápido assim nem o desajuste social foi tão intenso, grave e repentino. Houve mais ou menos um espaço de três anos entre esses acontecimentos. O uso da narração como sendo tudo nos anos 60 é, podemos dizer assim, um ajuste literário, assim como o impacto social.






17 – O Fim da Usina





Em 1960 a população da Usina começou a sentir que as coisas não iam bem. A produção da fábrica caiu, houve uma primeira lista de dispensa de operários e também se falou em falência da Companhia. Prometeu-se de tudo: um leilão público, muitos interessados e até a garantia de que um novo grupo assumiria, e todos teriam os seus direitos assegurados. O desespero tomou conta das famílias que, até então, viviam felizes e seguras, tinham uma vida agradável e uma boa casa para morar. A sorte é que se instalava em Matozinhos uma nova fábrica, a Fábrica de Cimento Cominci (iria ser inaugurada naquele ano), e isso abriu uma nova frente de trabalho. Muitos operários fizeram, à época, acordo com a Usina e se transferiram para a nova fábrica. Meu pai, em vias de aposentadoria, resistiu até o último momento. Só mais tarde, em 62, para completar o tempo de previdência, seguiu seus velhos colegas e trabalhou ali, na Cominci, o período que faltava para se aposentar. Em fins de 62, falava-se que a justiça lacraria as portas da Usina Santo André, e aos operários seria dado um prazo para que procurassem novo local para morar. Numa jogada política, a Usina não faliu, mas transferiu parte de seu maquinário para a cidade de Passos, deixando Matozinhos a “ver navios”.
Era triste ver as casas sendo desocupadas e a vila operária se esvaziando. Cada vizinho que se mudava era como se um pedaço de nossa história estivesse sendo mandada para longe.
        Para aumentar mais ainda o clima de tristeza na região, a Fábrica de Tecidos Pery-Pery, vizinha à usina, na mesma época, também fechou as suas portas, falindo e deixando igualmente dezenas de famílias frente a um futuro incerto e pouco promissor. Essa fábrica simplesmente não remodelou o seu maquinário e conseqüentemente passou a ter seus pedidos reduzidos. Não se preparou para a modernização do mercado, sendo engolida pela concorrência. Toda uma região que antes havia sido próspera e ativa, revestia-se agora de tristeza e insegurança.
        Mais ainda: a política desenvolvimentista do presidente Juscelino, incentivando a construção de rodovias, praticamente relegou as ferrovias federais a segundo plano. Também o bairro da Estação, de muitos momentos felizes da minha infância, experimentava seu momento de esvaziamento. Progressivamente, os trens foram perdendo a preferência como transporte de passageiros, sendo trocados por ônibus que faziam os trajetos de forma mais rápida.
        Todas as esperanças matozinhenses transferiam-se para a parte alta da cidade e para a nova fábrica de cimento.
        Neste ano de 1960, minha irmã Laura se casou. Conheceu Tomaz, um funcionário paulista da nova fábrica, e, para minha tristeza, pois era muito apegado a ela, nos deixou. Lembro-me da bela festa em minha casa e de todos os convidados, inclusive (novidade em Matozinhos) os engenheiros franceses e suas esposas - eles participavam da etapa de montagem da nova fábrica.
        Lembro também que à festa do casamento compareceram Seu Alcides, Dona Maria e Maria Goretti, que mais uma vez não me olhou.

domingo, 27 de janeiro de 2013

15- Andar de bicicleta



15- ANDAR DE BICICLETA









Bicicleta eu nunca pude ter na infância. Era um grande sonho que se revelou impossível. Primeiro porque eram caras, segundo porque tive uma enorme dificuldade para aprender a andar. Quem tinha uma e se exibia, inclusive recebendo olhares das meninas, era Antônio Dupin. Eu não podia nem tentar aprender a andar nas dos meus irmãos, porque eles não deixavam. Cada um dos meus três irmãos (Lúcio, Luciano e Christiano) que moravam ainda conosco tinha a sua. E eram lindas: as três de marca Göricke; a de Luciano, preta; a de Lúcio, azul e a de Christiano, um vermelho puxado para cor de vinho. O máximo que eles faziam era emprestar para Zezé, meu irmão mais velho que morava em Belo Horizonte e nos visitava de quinze em quinze dias. Na falta de poder andar, eu as lustrava com uma flanela quando meus irmãos estavam em casa. Gostava também de andar de carona com eles, na garupa.

Lembro que muitas vezes eu sonhava que conseguia andar sozinho, pedalando livremente sem ajuda e sem cair. Sonhava, também, que eu conseguia passar a perna por cima do selim com ela em movimento antes de começar a pedalar. Acreditem: a sensação é tão boa como sonhar que se está voando. Quem já experimentou esse sonho sabe do que estou falando. A tristeza quando eu acordava era igual: frustrante.

Sonhei uma vez que eu andava numa bicicleta azul e carregava Chiara na garupa. Ela passava o braço em minha cintura para se segurar, como uma vez eu vi uma moça bonita do bairro da Estação fazer com seu namorado.

Aprendi a andar de bicicleta só muito tempo depois, quando eu tinha já uns quatorze anos, mas nunca fui um exímio ciclista. Ando apenas o suficiente para não cair. Com essa idade, meus irmãos já consentiam em me emprestar. Passar a perna por cima do selim, até hoje nunca consegui. Essa é, junto com o fato de eu nunca ter aprendido a nadar bem, uma das minhas grandes frustrações.



Frustrantes, impraticáveis ou impossíveis, muitas dessas atitudes serviram para fechar aquele período entre infância e pré-adolescência. Serviram para mostrar que os caminhos do futuro começavam a se abrir. Serviram para demonstrar que, apesar de tudo, o importante era tentar, experimentar e insistir em acreditar que podíamos ser capazes. Ajudava-nos a entender o mundo e a descobrir qual era o nosso lugar nele. Era o mundo dos adultos sendo aos poucos apresentado a cada um de nós, como um desafio que deveríamos encarar de frente, sob pena de nos tornarmos adultos incompletos...




sábado, 26 de janeiro de 2013

14 - DESENHANDO...



14- DESENHANDO...



Dos tempos da Usina guardo também uma lembrança inesquecível: um incêndio noturno num dos canaviais. De repente, numa visão espantosa, vimos labaredas imensas engolindo as touceiras de cana, a noite clarear-se com as chamas e a vila operária, toda acordada, assistir ao canavial se dizimar. Na manhã seguinte, fogo apagado, as enormes montanhas de cinza pareciam um cenário de guerra. Aquilo impressionou muito, meus olhos de menino. Aquilo, pode-se dizer, foi também um dos “gatilhos” que me impulsionaram para o desenho e a pintura, como narrarei a seguir.



O ano escolar de 58 trouxe-me também outras novidades. Descobri-me capaz de soluções criativas que me fizeram alcançar sucesso com o grupo. Até então escondera ou não tivera chance de demonstrar que eu tinha habilidade com o desenho. Passei, a partir do memento que revelei, a ser uma espécie de desenhista oficial da escola, ajudando as professoras com os cartazes do Dia de Tiradentes, Dia do Índio, Dia da Independência, Dia da Proclamação da República, e outros. Iniciei aí também uma vitoriosa “carreira política” ganhando por unanimidade todas as eleições que havia para presidente do Clube de Leitura e para o Grêmio. Destacava-me como o melhor em redação e impressionava pelo vocabulário extenso e maduro. Quanto à matemática, em compensação... eu fui de mal a pior.

Impressionou sobremaneira minha professora, um desenho que fiz retratando o incêndio no canavial da Usina. Lembro-me pouco dos detalhes desse desenho, mas me lembro da repercussão que ele causou. Dr. Jurandy, um dia em visita a meu pai, viu esse desenho e falou que parecia Van Gogh. Foi a primeira vez que ouvi o nome do artista holandês.

Uma das minhas soluções mais criativas naquele ano escolar foi durante um trabalho da aula de História, sobre a Guerra do Paraguai, Duque de Caxias e a Batalha do Itororó. Enquanto meus colegas fizeram o texto escrito, eu o fiz em quadrinhos contando com o ritmo e movimento das histórias de caubóis ou das batalhas de índios contra a cavalaria, aquele episódio decisivo da guerra contra o país vizinho. Fiz tudo a partir de uma pesquisa séria: o combate (hoje vejo como extremamente covarde) de vinte mil brasileiros comandados por Caxias contra cinco mil paraguaios comandados pelo general Caballero. Itororó era o nome do rio, sobre cuja ponte travou-se um dos momentos mais duros da batalha. O Brasil teve 295 mortos e o Paraguai, 1.800.

Gostei de fazer sucesso. Gostei que meu trabalho fosse mostrado a todos os colegas na sala de aula daquele dia. Fiquei atento principalmente ao modo como Maria Goretti reagiu: mesmo que ela não falasse mais comigo, sentada três filas de carteiras à frente, voltou-se para me olhar. E, como todos os colegas, bateu palmas a pedido da professora.

Experimentei também derrotas nesse ano. Apanhei numa briga com um colega do qual não lembro o nome e cheguei em casa, para desespero de minha mãe, mancando e com um hematoma no rosto. Fiquei de castigo uns dias e descobri ali que eu não era bom de briga e que não devia mais me meter em confusões.

Passei o ano inteiro dividindo-me entre a euforia das brincadeiras, a ocupação com os deveres de aula e a incompreensão com Chiara, que ressurgira num lampejo e depois desaparecera de novo. Sentia falta dela e não entendia por que, até mesmo nos sonhos, ela havia desaparecido. Tentei várias vezes chamá-la ao quarto de brinquedos e muitas vezes, chorei ali, sozinho, a falta de minha amiga.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

13- Maria Goretti e Chiara



13- MARIA GORETTI  E CHIARA

No começo das aulas do terceiro ano do Grupo Escolar, tínhamos uma nova professora: Dona Salomé. Os colegas eram quase todos os mesmos que já me acompanhavam desde o primeiro ano, até que no segundo dia de aula Dona Salomé nos apresentou uma colega nova que se transferia do Grupo Escolar Visconde do Rio das Velhas para o nosso: Maria Goretti. Aquela menina, a mesma no carro de Seu Alcides, no dia da carona do campo do Pery-Pery... Maria Goretti era seu nome.
À época, na minha escola, a carteira escolar era dupla, e eu sentava sozinho, não sei por que razão. Dona Salomé levou-a até a minha carteira e disse que ela sentasse comigo, pedindo-me, também, que eu lhe emprestasse o caderno, para ela colocar a matéria em dia, em casa.
Nunca gostei, como todos os meninos de minha idade naquela época, de sentar do lado de meninas. Mas ali estava sendo diferente, e acho que meu coração até bateu meio descompassado. Comecei a sentir uma dor de barriga estranha que eu sentiria ainda muitas vezes durante minha vida, quando ficava junto às mulheres que me interessavam. Conversar com ela, naquele momento, eu não conversei, porque morria de vergonha, e ela também não era de falar muito, aliás, quem sempre conheceu Maria Goretti sabe que ela é assim. Mas, num determinado instante, eu a vi escrever em seu caderno: “Geraldo Roberto”. Estranhei que ela soubesse meu nome inteiro, pois, lembro bem, Dona Salomé havia se referido a mim apenas como Geraldo. E me surpreendi mais ainda quando, de repente, ela tomou o meu caderno e escreveu: “Chiara”. Foi um choque! Só aí eu descobri que a Chiara de dois anos atrás deixara-me a lembrança de uma presença, mas não me deixara um rosto. Lembro-me de ela ser uma menina bonita, assim como era a Maria Goretti. Mas, com certeza, não eram a mesma pessoa. O rosto da menina que conheci aos cinco anos aparecia-me na memória como algo desfocado, e que minha memória não reconstituía com exatidão. A lembrança da presença era uma coisa mais ou menos de energia, calor, um perfume agradável, coisas assim. E, se como adulto já foi difícil tentar entender aquela loucura, imagine como criança. Importa é que ali, medido e dosado cruelmente pelo destino, aconteceu um novo e curto encontro. Tendo ela escrito meu nome, um aroma rápido daquele perfume passou suave por minhas narinas. Passou ligeiro e quase inalcançável. Imediatamente bateu o sinal, ela se levantou carregando consigo o perfume e correu até a saída onde seu pai a esperava. No dia seguinte, sem razão aparente, Dona Salomé arranjou-lhe um lugar mais à frente e, naquele ano e até o fim do Grupo Escolar, em dezembro de 59, Maria Goretti nunca mais falou comigo na sala de aula. O caderno que eu emprestara no dia anterior me foi devolvido por Dona Salomé. É possível que Maria Goretti lhe tenha pedido para fazer isso. Abri o caderno, ávido de encontrar alguma coisa escrita, uma marca de lápis apagada, qualquer sinal da manifestação do dia anterior, e nada. Nem mesmo o mínimo sinal daquele perfume.

E ela não falou comigo, nem mesmo fora dali. Encontramo-nos ainda uma vez naquele ano, nas barraquinhas organizadas pela Usina para arrecadar dinheiro para a construção de sua igreja. Ela estava lá, numa das noites de festa. Havia um joguinho no qual um coelhinho era solto e tinha de entrar numa das dez casinhas numeradas (de 1 a 10). As crianças apostavam um troquinho qualquer de moedas e, se ganhassem (acertassem a casa em que o coelhinho entrava), ganhavam uma maçã. Naquela noite, ela estava lá com seu pai, jogando do meu lado, e foi incapaz de me olhar. Além de tudo, ganhou três maçãs, enquanto eu ganhei apenas uma. Não me importei de fato. Naquela noite eu tinha companhia. Do meu lado, jogando o jogo dos coelhinhos, havia uma menina de Capim Branco, filha de um amigo de meu pai. E naquela noite, essa menina foi sempre o foco dos meus olhos. Eu tinha, nessa época, um coração volúvel!

Aquela noite me faz lembrar, também, uma espécie de premonição que tive, pensamento que me deixou muito triste. Antecipei o que o futuro confirmaria: vi as casas da usina desertas, o velho prédio da sede se demolindo com a ação do tempo e abandono e a igreja (por cuja construção meu pai e os outros haviam lutado), também em ruínas e com o telhado destruído. Nos dias de hoje, nos primeiros anos do novo século, é assim que aqueles prédios se encontram.
Até hoje tenho essas premonições ou antecipações de acontecimentos. Tudo tem o seu começo, o seu auge e a curva (descendente) da decadência. Mais cedo ou mais tarde, acaba acontecendo. Lembrar, como me lembro agora, da Usina de Açúcar ativa, os operários felizes e suas famílias, o movimento de caminhões, tratores e atividade as vinte e quatro horas do dia, nos tempos de safra da cana, aumenta a minha tristeza. Isso me ensina a valorizar cada momento, sabendo que ele não se repete jamais...

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

12- Medo de morrer



12- MEDO DE MORRER

O medo de morrer foi uma grande preocupação minha durante certo período de minha infância, por volta do ano de 57.
Minha vida sempre foi assim, por fases. E essa fase de grandes medos começou quando morreu uma criança em nossa rua. Um menino pequeno, ainda de colo, filho de um amigo de meu pai. Levaram-me para vê-lo. Estava em cima da mesa da sala, num caixãozinho branco. Em minha casa, acostumamo-nos com a idéia da morte desde pequenos, concebendo-a como um fato natural do ser humano. Pelo menos era essa naturalidade que meus pais talvez quisessem que eu mostrasse enquanto estava ali, pela primeira vez num velório. Impressionou-me aquela criancinha parecendo de cera, como um boneco que não respirava. Não demonstrei nenhum medo, mas pensei muito, fiquei com aquela angústia imensa grudada no pensamento. Era difícil entender por que se morre.
Acompanhamos o longo enterro a pé, como eram os enterros em Matozinhos. Ouvi os sinos da igreja batendo, e aquilo dava uma tristeza danada. Cada badalada parecia acompanhar o suspiro desconsolado da mãe do menino, ao lado do caixão, amparada pelo marido e uma senhora. Ficava mais triste ainda quando se ouvia crescerem os barulhos das portas metálicas dos bares, desenrolando-se para fechar quando o enterro passava. E mais ainda, o que me impressionou sobremaneira foi o perfume adocicado das rosas que enfeitavam o caixão. Nunca mais eu suportaria o cheiro dessa flor. Nunca gostei também do cheiro de velas queimando. Lembra-me, sempre esse primeiro enterro a que assisti.
No cemitério foi tudo muito triste: a mãe, agarrada no caixãozinho, não queria deixar enterrar o filho. Todas as mulheres começaram a chorar com aquilo. Inclusive a minha mãe.
Voltamos para casa quando a tarde caía. Ouviam-se barulhos de cigarras nos matos do lado da rua. Todos os sons eram tristes.

Chegando a casa, bem no comecinho da noite, minha mãe mandou que eu recolhesse uns brinquedos que eu havia deixado de manhã no quintal. Estava quase escuro, muito frio, e no ar trazido pelo vento, senti o cheiro de rosas. Tive uma pequena tonteira, suei frio e não conseguia me mover, não conseguia correr para casa como eu queria. Salvou-me Lucio, chegando da rua com sua bicicleta e passando ali do meu lado, para guardar a bicicleta na varanda, perto da cozinha. Entrei em casa com ele e fiquei ali, por via das dúvidas, perto de minha mãe. Ela ainda me obrigaria a tomar banho, e aquele talvez tenha sido o banho mais rápido que tomei na minha vida.
Jantei pouco. Não tinha fome. Não conseguia deixar de pensar na criança morta. De noite, é claro, tive uma imensa dificuldade para pegar no sono. Naquela noite, por pavor, fiz uma coisa que há muito eu não fazia: mijei na cama. Minha capacidade imaginosa me fez enxergar o menino toda a noite, como o “boneco de cera” que me impressionara. Via-o em cima de uma mesinha do nosso quarto, que Christiano usava para estudar, como eu o vira em cima da mesa da sala de sua casa. A claridade da lua, entrando pela vidraça sem cortina, lançava, na parede e naquela mesa, sombras assustadoras, inclusive o farfalhar dos galhos da goiabeira projetados, em dimensão exagerada, como seres móveis, como num filme de pavor, passando na parede branca do quarto. Não faltou (poderosa imaginação!) o adocicado e enjoativo cheiro de rosas. Sonhei também: sonhei que estava no labirinto do jardim onde encontrava Chiara. Estava escuro. Chamava por ela, e ela não vinha. De repente enxerguei, lá no fim de um dos corredores do labirinto, aquele menino, pálido, sentado numa cadeira, olhando-me.
No dia seguinte, mais pavor ainda. Cismei que não ouvia o meu coração. Sempre ouvira dizer que quando se morria o coração parava. A cada vez que eu não percebia suas batidas, eu corria e saltava, apenas para ouvir de novo os batimentos salvadores. Naquele ano tive medo de morrer dormindo, tive medo de morrer na escola, tive medo de morrer envenenado chupando manga e bebendo leite, tive medo de morrer atropelado se saísse na rua: uma típica síndrome do pânico. Aquilo quase me atrapalhou os estudos, fez-me emagrecer e perder o apetite. Tinha medo de brincar e “morrer de repente”, como um dia ouvi meu pai contar que havia acontecido com o filho de um seu amigo.
Chiara, naquele ano, só me apareceu em sonhos. Lembro-me de que em um deles ela me disse que não precisava ter medo de morrer, “porque ninguém morre de verdade”. Aquela frase, vaga, no sonho, confundiu-me a cabeça. Perguntei para minha mãe, no dia seguinte, enquanto ela costurava, e ela me disse que quando uma criança morria, se houvesse sido batizada, ia pra céu e virava um anjinho ao lado de Deus. Eu não queria nem um pouco virar um anjo, e como medida de segurança, preferia ficar aqui mesmo na terra, mesmo que tivesse, de vez em quando, dor de barriga e dor de dente.

O medo dos mortos e da morte persistiu nas minhas noites. Durante o dia, as atividades com os brinquedos e com a escola me distraíam, embora eu estivesse sempre tratando de manter meu coração batendo, por via das dúvidas. Uma noite, vi (e talvez tenha sido um sonho) Chiara à beira de minha cama. Eu a olhava, tentava chamar meus irmãos e minha voz não saía. Por baixo das cobertas levei a mão ao peito e não senti meu coração. Senti minha pele gelada. Tentei mexer os pés, chutar as cobertas, e nada. Não me movia. Não conseguia ouvir minha respiração. Eu estava ficando sem ar, e o cheiro forte e enjoativo de rosas entrava pela janela estranhamente aberta. Depois de muito esforço consegui gritar. Saiu um grito fininho, por causa do pavor. Meus três irmãos que dividiam o quarto comigo acordaram e me acudiram. A camisa do meu pijama estava empapada de suor e eu estava num choro convulsivo. Minha mãe se levantou, trouxe-me água com açúcar e ficou ali, sentada na beira de minha cama, até que eu dormisse. Ela me disse que aquilo havia sido um pesadelo. Tenho dúvidas até hoje. No dia seguinte acordei com febre; minha mãe disse que eu não precisava ir à escola e Luciano me trouxe uma pilha de revistinhas novas que ele trocara com uns amigos. Fiquei na cama todo o dia e me senti seguro quando à tarde minha mãe veio para o quarto de costuras e ficou ali visível pelo reflexo do espelho novo. À noite, ela me fez uma reconfortante sopa de feijão, levantei-me um pouco para ouvir rádio com meu pai e tive um sono inteiro e sem sobressaltos.

 Contudo, aquele pesadelo parece ter fechado um ciclo. O que eu lembro é que depois dele os meus medos foram diminuindo, meu sono começou progressivamente a voltar a ser tranqüilo, e eu quase não me lembrava de conferir meu coração. A certeza dessa segurança se confirmaria quase no fim do ano, quando Paulo César, um colega de sala do Grupo Escolar, morreu de repente num domingo. Ficamos sabendo que ele era muito doente, e que aquele tipo de morte era esperada. Todos, da sala de aula, fomos à sua casa para o enterro na manhã de segunda-feira. Para evitar recaída, não quis entrar na sala e vê-lo. Vi apenas o caixão já fechado sair de casa, seus pais muito tristes, sua irmãzinha chorando, e o cortejo dobrar a esquina. Não quis acompanhar o enterro...


quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

11-A primeira vez que vi uma mulher de maiô



11- A PRIMEIRA VEZ QUE VI UMA MULHER DE MAIÔ


E 1957 foi ainda o ano em que eu vi, ao vivo, pela primeira vez, uma mulher de maiô. Conforme disse, extasiava-me com as artistas do cinema americano nas páginas de Cinemin e Filmelândia. Uma em especial sempre me chamou a atenção e fazia despertar em mim desejos que até então eu não compreendia: Verônica Lake. Tenho guardada comigo até hoje, já amarelada, a página central de Cinemim, com ela em um maiô de pele de onça, deitada numa chaise-longue forrada com a mesma estampa. Tinha longos cabelos louros caídos sobre o olho direito, uma boca de lábios cintilantes e olhos profundamente provocativos.
Minha primeira mulher de maiô, ao vivo, não era loura, nem se parecia com Verônica Lake. Nem sei ao menos quem era ela. Conto apenas como a vi. Na vizinhança da Usina, havia a casa de Dona Teresa Del’Boccio, mais ou menos nos fundos da casa de Seu Custódio Pacheco e Dona Marcola. As relações na Usina eram de tanta intimidade, que nós, crianças, podíamos entrar em qualquer casa sem bater. Na casa de Dona Teresa, por exemplo, havia um pé de mangas-espadas. Podíamos nos servir à vontade. Era o tempo de casas abertas, onde todos protegiam todos. Dona Teresa tinha um papagaio, “Meu Louro”, que anunciava sempre quando alguém chegava e entrava no quintal:
- “Dona Teresa, tem gente!”
E sempre brincávamos com ele, conversando.
Naquele dia, por mais que eu e meu amigo Chinho tivéssemos nos anunciado, ele continuou a dizer: “tem gente... Dona Teresa, tem gente...”.
Um pouco à frente, atrás dos parreirais de Dona Teresa, havia um córrego de águas limpas, represado num tanque de cimento como se fosse uma pequena piscina. E de lá veio o alarido de uma voz desconhecida. Uma moça, que eu nunca soube quem era, uma senhora e um rapaz de óculos escuros. Dos últimos, essa descrição é o que lembro. A mulher parecia mãe, ou sogra. O rapaz, irmão talvez, ou marido, ou noivo, ou apenas namorado. Da moça, lembro mais: morena, nem alta, nem baixa, e usava um maiô de duas peças, audaciosíssimo para a época. Ela dava gritinhos em contato com a água fria.  Seus acompanhantes, vestidos, apenas olhavam.
Eu e Chinho chegamos perto para ver. Eu tive dor de barriga, daquela dor de barriga gostosa, só de olhar. Eu ainda não entendia realmente essas sensações.
E era como se nós não estivéssemos ali. A moça continuou na água fria, gritando, e os outros dois, rindo muito. Chinho olhava-a com olhos arregalados. Eu a olhava com dor de barriga.
De repente ela saiu da água e o rapaz enrolou-a numa grande toalha azul. A moça tirou a touca e soltou seus cabelos negros e muito compridos. Em sua pele, principalmente nas pernas, havia ainda gotinhas douradas da água. Suas pernas estavam arrepiadas pelo frio.
De repente Dona Teresa apareceu. Chamou-os para um café que havia coado. Eu e Chinho ficamos ali embasbacados. Quando eles foram tomar o café, ficamos olhando o córrego que passava e pensando em pernas.
Eram parentes ou amigos da dona da casa? Não soubemos nunca. Eu, pelo menos, nunca soube.
Eu ainda vi a moça mais umas duas vezes: uma vez passou de bicicleta em frente a minha casa. Usava calças compridas e um lenço no cabelo. A outra, na igreja, no domingo seguinte. Vi-a comungando. Nos cabelos um véu branco, nas mãos um terço e um missal. Vestia uma saia branca e uma blusa rosa. Olhei-a atravessar contrita todo o corredor até a mesa de comunhão. Ela sentava-se no banco imediatamente atrás do nosso. Acompanhei-a com o olhar e tive uma imensa vontade de rir, porque ela mastigava a hóstia. Aquilo para mim era pecado.

Naquela tarde fui de novo à casa de Dona Teresa. Tinha esperança de encontrar a moça. Não estava. Nunca mais a vi. Foi embora, e não descobri o seu nome. Fiquei até a tarde cair, mastigando um talo de capim, pensativo, à beira do córrego. Lembro-me de um bando de andorinhas cruzando o céu, e o frio da tarde me mandar para casa. Pedi a Deus, enquanto rezava, para sonhar com a moça. Ele não me atendeu.

Muito tempo depois, no quarto ano do Grupo Escolar, fiz uma redação com o título: “A moça de maiô”, lembrando-me, é claro, da moça da casa de Dona Teresa. Dona Amélia, minha professora da época, pareceu não gostar. Duvidou que eu tivesse escrito sozinho e considerou desrespeitoso o que escrevi. Por castigo, fez-me escrever duzentas vezes no caderno: “Prometo não escrever mais obscenidades.” Não me lembro por quê. Devo ter dito que aquelas pernas me fizeram ter boas sensações.