domingo, 18 de outubro de 2015

CRÔNICA DO SABONETE DORLY E DO TALCO EUCALOL

Ninguém se lembra, certamente, do perfume do sabonete DORLY. Esta marca de sabonete foi no final dos anos 50, a única marca usada em minha casa. Meu pai comprava caixas e caixas. Não sei por quê! Essa mania do meu pai fez com que eu arquivasse na memória este cheiro que nunca mais senti, mas que lembro com exatidão por um desses mistérios da mente. Lavar o rosto de manhã, as mãos antes das refeições o banho da tarde, práticas diárias. Revejo agora no Google, a imagem que ilustrará este texto. Aproveito pra fazer o desafio: quem mais conhecia essa marca de sabonete?
Minha vida, já escrevi várias vezes, é regida pela memória dos cheiros. Nem sempre cheiros bons como o de Dorly, floral, com uma pitada de canela, se é que consigo descrevê-lo.
Sempre achei que os perfumes se acentuavam nos domingos, principalmente na minha casa. A missa da manhã, das sete, era obrigatória. Eu, criança obedecia, por que isso faz parte do protocolo infantil, Meus irmãos adolescentes e já rapazinhos, não tinha opção mesmo e nem era por causa de alguma espécie de protocolo. Obedeciam e iam à primeira missa da manhã, mesmo que os bailinhos de sábado houvessem lhes roubado a disposição de acordar tão cedo. Mas eles eram jovens, tinham energia e tinham bicicletas, bicicletas GORICKE com o cheiro de graxa das engrenagens. Não precisavam fazer o trajeto da Vila da Usina à igreja a pé. Eles cheiravam também à Brilhantina GLOSTORA que passavam generosamente nos cabelos para fixar os topetes, pensando talvez, em prováveis olhares femininos à saída da igreja. Virtuosos, nas bicicletas, se exibiam... Meu pai cheirava à uma loção de barba amadeirada e minha mãe à pó de arroz. Aliás, fins de semana, a casa tinha vários cheiros: cheiro de PARQUETINA, a cera que lustrava os assoalhos no sábado, cheiro de ANTISARDINA que minhas irmãs usavam, possivelmente contra sardas, cheiro da revista O CRUZEIRO, com sua tinta gráfica marrom e forte. Quem lembra? E eu ia á missa com cheiro de Dorly, ainda do banho de tarde anterior. Sabia que na volta da missa, um lauto café da manhã, com cheiros variados nos esperava. Só não entendia porque eu também esperava o depois da missa se ainda não comungava? Jejum desnecessário...
Lembro ainda de Tereza Cristina, uma paixão precoce, que cheirava a talco EUCALOL. Por que me lembro? Por um desses motivos que um homem não esquece: a primeira namorada. Eu tinha oito anos e já sentia o coração bater incontrolado quando a via. Éramos vizinhos e eu passava horas no portão, só pra vê-la na casa em frente. Não nos falávamos quase, porque meninos e meninas, pouco se falavam. Acontece, que numa noite de quinta-feira, houve o aniversário de Glaucia (outra menina) e todos as crianças da Vila da Usina foram convidados. Entre brincadeiras, também se brincou de namorar. Acho que pela primeira vez peguei na mão de uma menina de modo a acelerar meu coração... Brincar de namorar era assim, desse jeito combinamos, os meninos e as meninas, naquela noite. “Namorei” umas quatro desse modo. No final, audacioso (sim, eu era!) propus-lhe que namorássemos também no domingo de manhã, no campinho de futebol. Ela disse que sim, meu coração disparou e mal pude esperar aquele domingo depois da missa.

Querem saber os cheiros do dia, além daquele do protocolo da missa? O vento tinha um hálito melífluo das Acácias-mimosas em início de primavera. Meu sapato, exageradamente engraxado reacendia cheiros de pasta NUGGET e meu cabelo engomado pelo exagero de Glostora não se abalava com o vento. Ela veio ao encontro comendo bolo, bolo de chocolate, com cheiro de TODDY e me ofereceu um pedaço. Me deu a mão (sim, a iniciativa foi dela!) e ficamos um longo tempo em total silêncio, de mãos dadas, até que a proximidade do almoço nos separou. Simples assim. Apenas isso. Lembro que combinamos “namorar” outras vezes, mas não aconteceu. Nunca mais falamos sobre aquilo. Crescemos e, ironicamente, nunca fomos amigos, mesmo que nunca tenhamos brigado. A vida simplesmente empurrou cada um de nós para um canto diferente e ficou em mim apenas a lembrança do seu perfume Eucalol, daquela manhã de domingo, que a memória teima em trazer de volta, sempre que um ruído de primavera espalha no ar o cheiro melífluo das acácias. Lembrar é bom!

segunda-feira, 12 de outubro de 2015





LUZES DA NOITE
Conto do meu primeiro livro: "Os comedores de vidro"

         Não me cabia, ou a qualquer outra pessoa que vivenciasse aquele instante, saber quais eram as forças propulsoras daquela mão invisível que distribuía as cores nos pedaços picados e brilhantes das fotos que se esparramaram flutuantes no vento. Do mesmo modo que até hoje ninguém descobriu quem organiza o colorido de cinema das bolhas de sabão.
          Rápidas e cambiantes, as cores refletidas nos pedacinhos de papel pareciam disputar com o prateado da chuva a missão de substituir as estrelas, que nessa noite não vieram. Em câmara lenta... escorriam ondulantes, como uma cascata iluminada e bailarina, jorro brilhante-cauda de cometa.
           Da janela do meu quarto eu sorri. Primeiro pela ousadia do meu gesto, segundo por que eu era poeta...
Tudo havia começado no bar. Naquela noite que era de chuva e frio. À meia-noite e vinte, quando mirei o mostrador do relógio e busquei na consciência a autorização para tentar de novo. À minha frente os óculos do garçom refletiram as cores misturadas de todas as roupas, todas as garrafas, todos os brilhos dos copos... como se duplicassem um arco-íris desorganizado.
Mirei também o ventilador do teto que liquidificava, lento e rouco, as vozes do bar. Liquidificava ainda, em espirais contínuas, a fumaça de muitos cigarros, as cores... Madrugada fria! A porta aberta, sugando os passantes perdidos da noite, fugitivos dos bares já fechados. Eu já havia abandonado a mesa dos amigos, trombado nos que entravam, e tentava, mais uma vez, no telefone do balcão, outra ligação para Tereza. O irritante e contínuo sinal de ocupado, do outro lado da linha, me desanimava. Com quem falaria Tereza àquela hora? Estaria o aparelho fora do gancho? Deveria tentar de novo? Poderia (se fosse decidido) acreditar na hipótese viável de estar o outro aparelho desligado. Seria não sofrer. Ciumento e inseguro, arrepiei-me com a possibilidade de outro estar ouvindo aquela voz, que até ontem era minha. No bar enfumaçado, na madrugada fria, outras vozes, por vezes, confundiam-me. Lembravam-me, por defeito de sintonia e mixagem imperfeita, a voz de Tereza – mascarada nos gritos e sussurros. Passou em minhas lembranças uma sucessão de imagens da mulher na qual eu pensava, como um filme curto e sem enredo: preto e branco.
Olhei com desinteresse a fauna eclética do bar: homens de terno que perdiam a sisudez, afrouxando as gravatas à medida que a noite os transformava. Homens gordos e magros. Mulheres pintadas e despintadas à medida que muitos abraços lhes derretiam as pinturas. Mulheres magras e gordas. Gorduras éticas e não-éticas. Magrezas incômodas. Homens e mulheres contaminados pela química do bar...
Pensei em um campo verde. Vi-me correndo com um cachorro amigo, numa tarde de sol.
Ameacei, com o dedo no disco, ligar outra vez. Desisti com o barulho de uma taça quebrando. Suspirei como se estertorasse, com um fiapo mínimo de ar limpo que bailou à minha frente.
Se desistisse de tudo e fosse embora, perderia a chance de tirar a dúvida. Sepultaria a chance – quase nenhuma – de reconciliação. Já eram demasiadamente difíceis as coisas em minha vida, para assumir gestos de poucas possibilidades. Não ousei gastar – por temer consequências – as últimas fichas de sobrevivência daquele caso de amor. Tentaria sim, mas com a certeza do passo dado, o perdão da namorada. Precisava disso. Questão de sobrevida. Assustava-me (consciência de quem sabe com quem lida) a quase inviabilidade de minha esperança.
Estava ali no bar, desde o começo da noite, quando tentei a primeira ligação e não encontrei a voz que queria ouvir. Deixara na secretária eletrônica o recado para que Tereza fosse ao meu encontro. Detestei – porque me inibia e me deixava sem espontaneidade – falar com uma máquina, mesmo que contivesse a voz de Tereza. Unilateral. Lembrei-me, no entanto – porque, desde o dia anterior, dera para recordar – que havia sido através da secretária a marcação do meu primeiro encontro com Tereza, há dois anos. Teria sido preferível, no entanto, hoje no instante da ligação, falar com uma voz que me respondesse. Se pelo menos houvesse um fio de esperança, tênue que fosse, para me agarrar! Queria acreditar os ânimos houvessem serenado depois da pesada noite anterior. Pensei com tristeza e desprazer na Tereza incontida, improperante e nervosa do último encontro. Teria se acalmado? Teria ouvido o meu recado? Tentei me convencer de que ela não atendera o recado por estar no banho, por ter ido às compras no supermercado noturno, ter ido à portaria buscar correspondências do dia ou ter ido simplesmente à Lúcia, sua vizinha, buscar emprestada uma xícara de açúcar. Por que não retornara o meu chamado?
Eu não tivera um bom dia. Haviam vencido duplicatas minhas no banco, e enfrentava a dura pressão do gerente. O dinheiro que eu tinha pouco e difícil de ser esticado até o fim do mês. Tudo me abalava, inclusive a gastrite renitente me queimando por dentro. Meu pigarro, de muitos cigarros, transparecia num refluxo azedo, que me piorava o hálito. Além de tudo eu engordava. Minha barriga dificultava amarrar os sapatos e até um gesto prosaico, como cortar as unhas dos pés...
Talvez (pensei) fosse prudente ir para casa. Não precipitar as coisas. Precisava me dar um tempo, afugentar a depressão, e talvez Tereza precisasse de mais um dia. Talvez fosse conveniente deixar-me abraçar pela noite: no bar, ou na proteção ventral do apartamento. A última era a melhor das alternativas. Aquecer-me-ia, poderia pensar serenamente, corrigir-me ou ocupar-me de planejar o reencontro. Talvez assim os rumos da minha vida se reorientassem. Senti um leve aliviar da tensão.
Tomei ali mesmo, no balcão, uma última dose: saideira para enfrentar a umidade das ruas. A bebida, no copo de cristal, olhada contra a luz, espalhou estilhaços de cor na minha alma.
Se Tereza tivesse vindo, se tivesse aportado ali do meu lado, não importando de onde estivesse vindo, não estaria me sentindo tão derrotado. Tereza me faria esquecer todo o resto. Tereza era algo concreto. Minha vida? Corrigível porque as manhãs, teimosas, insistem em trazer um novo dia, por pior que tenham sido as noites passadas. Infelizmente, no entanto, Tereza não viera, não respondera ao meu apelo.
Decidi então deixar os amigos e ir embora. Recolher-me na espera de que a noite varresse os meus medos e uma nova manhã me iluminasse com alguma chance. Deixei com os amigos um recado (sem esperança) na eventualidade de Tereza aparecer. Constatei, enquanto atravessava o labirinto das mesas, que não me fariam falta os amigos do bar. Nem naquela noite, nem em nenhuma outra noite da minha vida. Três amigos dispersivos, que, principalmente naquela noite, só haviam me irritado. Colaborado para aumentar a minha tensão. Santiago, com seu hábito dissimulado de abraçar todas as mulheres; Isabel, com sua risada gorda e masculina: Ismael com sua mania estranha de bochechar o vinho. Irritantes!
Paguei minha parte na despesa e saí para o frio das ruas. Atravessei a calçada entre putas e bêbados, buscando a pé, por causa do pouco dinheiro e porque era perto, a rua do meu prédio, Nesse trajeto pulei várias poças d’água que refletiam neons. Não sabia que tornaria a ver, ainda naquela noite, outros reflexos coloridos.
Subi a escada ouvindo o rangido estertorado da madeira, choros de criança e gatas no cio. Prometi-me um banho quente, café forte e não beber mais aquela noite.
O café, forte e quente, reacendeu a minha alma. O banho me fez vigilante. Aconcheguei-me no calor de minha casa e olhei a janela, postando-me como um voyeur olhando a vida pública: cenário dos desesperados da noite. Minha rua era a página policial de um jornal ao vivo. Antro de bêbados, excluídos, prostitutas, drogados, travestis e toda essa fauna de deserdados. Olhava-os com os olhos neutros de um protegido. Talvez (pensei com a frieza de um pesquisador) alguns daqueles
seres pudesse ocasionar no decorrer da noite um assunto para um conto. Acostumara-me a escrever, sempre que estava tenso. Ajudava-me a enganar pensamentos.
A chuva – cíclica – voltou de novo com uma pancada forte e transbordou bueiros. Um ônibus passou rangendo lonas de freio e abrindo as águas, como Moisés e seu cajado. As cores refletidas na água misturaram-se numa coreografia rápida, balé enlouquecido, e depois acomodaram-se de novo, como se a corda que movimentou aquela água estivesse no fim.
Embaralhei os pensamentos, pensei na chuva, imaginei que o céu chorava e não consegui despregar Tereza de minha alma. Poderia ter chorado como o céu, mas não chorei. Ao contrário, vasculhei todo o trecho do quarteirão alcançável pela minha vista: com frieza. Debaixo da marquise da agência lotérica, um homem e uma mulher embaraçavam braços e pernas; na porta da farmácia, três mendigos disputavam uma garrafa e se aqueciam com uma rala fogueira de papéis; no parapeito da imobiliária, dois grafiteiros molhados de chuva escreviam textos incompreensíveis.
A rua era um mosaico de fatos e ocorrências. Temas para muitos contos. Bastaria, se fosse o caso, costura-los como se costura uma colcha, ou simplesmente selecionar, garimpando entre tantos fatos os possíveis detonadores de uma história. Fosse eu um escritor permanente e contumaz, teria essas prerrogativas: inventar, reinventar, aumentar e transformar banalidades. Poderia, por exemplo, pegar o casal que enredava corpos e pernas e transformar a mulher num travesti. Pensei com ironia - porque nos últimos dias dera para inventar formas de vingança – que o “traveco” poderia ser um gerente de banco correto e formal que a noite transformava. Pensei em Raimundo Neves, que me pressionava com duplicadas vencidas e por meu saldo estourado. Tão formal e limpo o Raimundo Neves! Imaginei-o à noite botando a peruca loura, passando-se batom e rouge e transformando-se num simulacro de mulher. Verônica Blando – seria um bom nome. Odnumiar Seven poderia ser o outro nome da personalidade dupla, o nome do lado masculino. Sorri, acho que pela primeira vez nesta noite.
Poderia também transformar os três mendigos da farmácia. Quem sabe fazê-los desafortunados, que foram um dia pessoas economicamente viáveis, que por um desses azares incontidos da vida, um dia ficaram pobres. Pensei em dois homens e uma mulher, porque, da distância que os via, eram inidentificáveis. Seria também uma vingança contra Santiago, Isabel e Ismael, os companheiros do bar. Dois homens, uma mulher e uma garrafa de cachaça. Três seres a lembrar noites quentes de conforto, tiritando agora de frio, numa calçada de uma rua qualquer. Dois machos animalizados pela bebida que duelariam até a morte, por aquela mulher como se ela fosse a última mulher do mundo...
Pensei em vingar-me também de Tereza. À medida que a noite me acomodava os pensamentos, comecei a construir uma raiva vagarosa de Tereza. Mal sabia que aquela raiva estava se fermentando há muito, aos poucos, imperceptível, crescendo lenta e estufando como um bolo em minha alma. Mal sabia eu do tênue fio que separa as duas distâncias. Detestei-me, por haver deixado que ela me humilhasse tanto. Odiei-me por ter me deixado dominar, tanto tempo, por Tereza. Começara, ali mesmo na janela, quase sem perceber, a alimentar o sonho de desprender-me daquela mulher que me fizera tanto mal. Pensei nos grafiteiros e os imaginei escrevendo frases pornográficas com o nome de Tereza. Retomei a intenção do conto e descobri que aquela era uma terceira idéia. Pensei numa personagem aparentemente pura, católica e recatada, com o mesmo nome: Tereza. Mulher que um dia caía na boca do povo. Por culpa de grafiteiros, terroristas da noite que denunciavam sua vida dupla. Pensei em uma cidade acordando e em uma pecadora desvendada. Tereza, Tereza, Tereza... pecadora! Insisti comigo mesmo, espanando o nome, varrendo-o e carregando-o para o lixo, para um arquivo morto – dando baixa. Eram três motes a serem desenvolvidos. Qual deles poderia escolher?
Agora já não tinha mais pressa. Não precisava mais recompensar-me por ter perdido Tereza, nem de autocompadecimento. Ri de novo, percebendo que, sem nenhum esforço, e surpreendentemente sem sofrer, ela começava a ser desfocada de minhas lembranças. Até duas horas atrás, nem me passava pela cabeça que isso pudesse ser possível. Percebi-me com uma capacidade de reconstrução que desconhecia. Talvez as mágoas tivessem transbordado... como os bueiros que alagaram a rua. Senti-me reanimado. Fizera-me bem o café forte. Senti-me seguro para evitar um novo cigarro e expeli flatulências, num ato rebelde que denunciava liberdade.
Limpei a vidraça, olhei mais uma vez o casal, os três mendigos e os grafiteiros, decidido a esquecer Raimundo Neves, Ismael, Isabel, Santiago e, principalmente, Tereza. Poderia até adiar o conto.
Busquei na estante a caixa de sapatos com vinte e nove fotos de Tereza. Repassei, uma a uma, cada foto, olhando sem emoção. Comecei a rasgá-las em pedacinhos minúsculos. Descobri-me sentindo prazer naquele gesto. Senti-me como que exorcizando um encosto: com alívio. Pedacinhos de mais ou menos meio centímetro, calculados com frieza. Com frieza calculei que, somados, aqueles pedacinhos dariam mais ou menos nove mil... dez mil e poucos. Rasgando as fotos, matava Tereza – simbolicamente. Desejei ardentemente, por vingança, que Tereza estivesse, nesse exato momento, descobrindo que me amava. Senti que teria imenso prazer em recusá-la e vê-la sofrer por minha causa. Queria que ela viesse me pedir perdão, que pelo amor de Deus eu a perdoasse, só para ter o prazer de negar e vê-la chorando. Adorei-me por saber que não teria remorsos.
Gastei o razoável naco de tempo que se leva para rasgar vinte e nove fotos, tamanho postal, em dez mil e poucos pedaços. Enquanto isso, pensei. Pensei no amanhecer, que já se aventurava detrás das colinas e para o qual deveriam faltar umas duas horas. Na minúscula fração de tempo que dura um piscar de olhos, tomei uma das decisões mais corajosas da minha vida: fechar o apartamento, juntar o mínimo necessário, tomar o primeiro ônibus da manhã, que fosse para bem longe, para o interior. Arranjaria emprego em um colégio, porque sabia, seria um excelente professor de português. Ganharia pouco, mas estaria longe da pressão da cidade grande. Poderia voltar a escrever, sem pressa, como gostava, longe dos momentos tensos, apenas por prazer, não mais como remédio. Com dignidade. Poderia, quem sabe, encontrar uma moça sem neuroses, casar-me, ter filhos, sogro, sogra, sobrinhos, macarronada aos domingos, um cachorro e uma bicicleta. Seria reconstruir a minha vida. Para muito melhor!
Embaralhei minuciosamente os caquinhos dos retratos, tornando impossível – quebra-cabeça imponderável – reconstituí-los.
Pensei em queimá-los, mas preferi brincar de neve... ou confete. Abri a janela e o vento assoviou como os desejasse. Despejei-os na noite. Misturaram-se, mais ainda, enredemoinhados... gangorrando...

Com o coração destampado de alívio, olhando a cascata iluminada bailando na chuva, assobiei baixinho o "Danúbio Azul". E o fiz melhor, muito melhor, do que a Orquestra de Viena, em suas melhores performances. Gorjeei como um pássaro acompanhando o balé. Voltei os olhos para o pedaço de céu atrás dos prédios e adivinhei um sol gigante, redondo e flamante que vinha empurrando a noite, brigando com a chuva e descerrando as cortinas de um novo dia.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A PAIXÃO DE ROSÁRIO

                                                                          
Um conto de "Ouvido absoluto", meu novo livro que sairá em breve





 A PAIXÃO DE ROSÁRIO



  
Rosário tinha uma paixão. Paixão escondida. Nicanor da farmácia.
Quantas vezes, quantos sonhos..., acordando incendiada de desejos... e de pecados! Palpitações bombeando o peito, gambiarras de luzes estalando estrelas tontas no cérebro, coração acelerado, respiração sôfrega. Quantas vezes?
         Nicanor... Nicanor! Comparava-o com JK, em uma foto de cabeceira, destacada de uma revista: JK, o presidente, na varanda do Catetinho. Pareciam gêmeos, pensou enquanto acarinhava os bicos dos seios por cima do vestido. Suspirava profundamente, cada vez que fazia isso.
          Amava-o de longe, com toda a dor que representa amar amordaçada por uma distância difícil..., por não tê-lo para si, nas noites frias que passava sozinha, por não tê-lo para si, para botar-lhe a mesa, botar-se para ele na cama macia de chenille azul, afagar-lhe os cabelos, esperá-lo com os chinelos, com o jornal, com o que ele quisesse.
         Rosário tinha trinta e nove anos e nunca experimentara um homem. Nunca tivera na vida um beijo que lhe afogueasse a alma. Beijo na boca. Beijo de língua. Só imaginava. Imaginava com a restrição que o pensamento constrói. Teoria sem prática. Suposições. Apenas.
         Abraços, só do falecido pai e do primo José Antônio. Do pai um cheiro de loção guardado na lembrança. Do primo, o perfume oleoso da brilhantina Glostora. Rosário sabia que abraço de parente não incendiava. Era formal, contido, respeitoso. Não tinha a fagulha que eclode em fogo destravando os freios do coração indomado. Não tinha.
Rosário morava só. Vivia da aposentadoria que lhe deixara o velho pai. Ela e Bichano, um gato brasino, única companhia de sua vida de solteira. Único que a ouvia, paciente e ronronante, falar de Nicanor, sem nunca virar o disco.
         Todos os dias, de segunda a sábado, corria à janela quatro vezes por dia para ver Nicanor passar. Disfarçada, atrás da cortina. Quinze para as oito, meio dia, uma e meia e sete da noite. Religiosamente. Metódico, Nicanor e seus horários da farmácia.
         Rosário só suportava os domingos porque podia vê-lo na missa. Missa das sete. O resto do dia, sem ver Nicanor. Rosário sabia tristes os domingos. Iguais quase todos. Ao meio dia, cheiro de lasanha saindo das casas como se todos comessem lasanha. Todas as mulheres, seus homens e seus filhos. À tarde, os rádios transmitiam futebol e as mulheres faziam café para seus homens. À noite, outra missa, às seis, e depois as famílias ao pé do rádio ouvindo “Parada de Sucessos Tonelux” e o “Grande Teatro Lever”. As mulheres com os seus maridos. Rosário só com o gato. Sozinha. Rosário odiava os domingos, por só ver Nicanor na missa. Depois, o resto do dia sem vê-lo. Suspirando... suspirando.
         Rosário sabia tudo de Nicanor. Solteiro, quarenta anos, viva sozinho com a mãe. Não se casara, mas é quase certo que muitas o desejaram. Talvez ele estivesse se guardando para ela. Quando Rosário arriscava-se a sair e passar em frente à casa dele nos domingos, via-o na varanda, de camiseta de física, molhando as plantas e cortando as unhas. Às vezes ele a cumprimentava com um meneio de cabeça e às vezes ele dizia “Boa tarde, Dona Rosário”. Rosário sabia que ele era metódico. Amava-o assim mesmo e sonhava com ele etiquetando a sua vida, todos os dias... até o fim. Afora a missa, ele nunca saía de casa aos domingos. Era dos poucos homens que não ouviam futebol às quatro da tarde. Era raro vê-lo fora de casa. Muito raro. Casa, farmácia, casa. Uma vez Rosário viu-o sair em direção à casa das mulheres e voltar apressado enxugando o suor do pescoço com um lenço. Aprendeu que esse era o seu programa de toda última sexta-feira do mês. Metódico. Nessas sextas, Rosário passou a evitar abrir as janelas.
         Afora os “bons dias”, “boas tardes”, falara com ele duas ou três vezes. Mais? Não tivera coragem. Uma vez quando foi comprar Cibalena na farmácia, outra quando assistiram, quase juntos, ao desfile de sete de setembro, e ele disse apontando os meninos do Colégio Machado de Assis: “No meu tempo não tínhamos fanfarra”. Outra vez foi nas eleições, quando ele, mesário, fora gentil segurando sua sombrinha enquanto ela votava. Falou alguma coisa do tempo e como a cidade ficava suja com as propagandas das campanhas. Três vezes. Três vezes inesquecíveis, e a memória de Rosário gravara o som da voz, a entonação da voz, cada simples sílaba proferida, e repetia no pensamento, repassando, feliz, a lembrança, como se aquilo fosse mais importante do que tudo.
         Houve raivas nesse tempo de paixão. Cinco ou seis vezes indo à farmácia pra comprar um remédio inventado e sendo atendida por Maria Dalva, a moça que trabalhava com ele. Nesses dias Nicanor manipulava receitas atrás da estante ou aplicava injeções. Vontade de gritar: “Quero que o Nicanor me atenda! Quero que o Nicanor me atenda!”. Mas Maria Dalva, mocinha enjoada, chamando-a de dona, de senhora, cheia de salamaleques...
         Pior era no confessionário. Padre Nelson perguntando pecados, e Rosário tendo de contar dos sonhos molhados. Padre Nelson querendo saber quem era o homem, e ela mentindo (mentir é pecado!) que era homem inventado, da imaginação, parecido com Tyrone Power ou Errol Flynn. Ato de contrição e dez ou doze ave-marias rezadas depois do confessionário, com a sensação de culpa grudada na alma, sem ter como resolver: “Eu, pecadora, me confesso a Deus, todo poderoso... quero trepar com Nicanor!... perdão, meu Deus... perdão...”. A hóstia da comunhão confrangida, queimando o céu da boca, embolando na garganta, o pão ázimo dissolvendo-se na saliva... medo de morder o “corpo de Cristo”, pensamento rezando baixinho: “me salva, Senhor, me perdoa, Senhor, sou uma pecadora apaixonada... preciso de um homem, preciso de Nicanor..., me salva, Nicanor, me abraça, Nicanor...”.
         Diz-se que o tempo é um rio caudaloso que se arrasta destruindo tudo à sua volta. O rio do tempo, traiçoeiro, pegou Rosário. Um dia ela se deu conta de que passara três anos à janela. O ano de 1958 vivia seus estertores. E é feitio do tempo desesperançar os ansiosos. Rosário começou a sentir essa desesperança quando fez quarenta e dois anos num dia cinzento de dezembro. Num domingo, com cheiro de lasanha no ar e muitos gritos de gol expelidos pelos rádios. Deu-se conta quando a paixão virou dor no seu peito.
         E foi ficando triste, ensimesmada. O coração, inchado por aquela paixão doentia, fermentava a dolorosa impossibilidade do prêmio amoroso. Se já não era de muito falar, menos agora falava então, com as poucas pessoas com as quais ainda se dava: o primo José Antônio, Cidinha, amiga solteira como ela, e Maria do Carmo, colega da congregação das Filhas de Maria.
         E também parou de comer. Emagrecia a olhos vistos. José Antônio, Cidinha e Maria do Carmo, preocupados. Começou a enfraquecer e ter olhinhos fundos com um ar de tristeza tatuado no olhar. Precisava de vitamina. Injeção. Na farmácia, a solução. Levada carregada de tão fraquinha... recomendando com um fiozinho de voz: “Quero que o Nicanor me aplique!”.
E assim foi feito. Nas nádegas, porque o braço estava magrinho.
Difícil descrever essas emoções particulares que serpenteiam viajantes pelo corpo, nesses instantes em que algo parece carregar de novo as baterias fraquinhas. É uma luz se acendendo no escuro. É um arrepio na espinha acordando sensações. É uma voz milagrosa dizendo no ouvido: “Levanta-te e anda”. O toque! Talvez seja melhor explicar esses sentimentos pela ótica de um toque que acende corpo e coração. Nicanor, metódico, profissional..., mas também atencioso. Nem doeu a injeção. Oleosa, era para doer. Mas havia a magia anestesiante do toque do amado, a mão de pele lisa... faísca elétrica fagulhando a alma. Sem forças ainda, mas num sobre-esforço esboçando um sorriso, Rosário agradeceu com os olhos. E foram mais duas injeções. Dois dias felizes. Nicanor tão perto que dava para sentir o cheiro da loção de barba: “Madeira do Oriente”, a mesma marca que o pai usava. O melhor de tudo era a mão macia tocando o glúteo, para separar o músculo do osso, colocando depois o algodãozinho e esperando o pontinho de sangue estancar. Tão carinhoso!
Cumprido o tratamento e com a atenção das amigas, Rosário recuperou até a cor. Precisava comer. Disso se encarregaria Cidinha, seguindo recomendações de Nicanor – quase médico. Polenta, caldo de carne, espinafre e feijão. Vitaminas.
Duas semanas, dieta com método e Rosário reacendendo a luz da saúde. Só que, se melhorasse, Nicanor se afastaria de novo, conjecturou tristemente. Duas semanas era tempo longo demais e as lembranças boas começavam a se apagar. Rosário precisava ver Nicanor, de perto. Não lhe bastava a janela.
Cidinha trouxe a janta. Rosário agradeceu sorrindo, prometendo comer depois da novela da Rádio Nacional. A amiga confiou.
Enquanto Cidinha virava as costas, batia a porta e descia as escadas, Rosário fez cálculos. Chamou então Bichano e ofereceu-lhe – quentinha – a polenta com caldo de carne. Bichano deu voltas de felicidade em torno do prato, ronronou, comeu tudo e lambeu-se todo, depois deitou no sofá para fazer a digestão. Rosário olhou o calendário. Cinco a seis dias sem comer e seriam necessárias novas injeções. Um arrepio de prazer e felicidade lhe queimou o peito.

Ah, Nicanor... Nicanor!