27- DURANTE
UM JUBILEU
Estar com Chiara (principalmente) amenizava tudo. E
cada momento que eu passava com ela, mais me certificava disso.
O fato de eu estudar com alguém, como relatei
anteriormente, era comum na minha vida, assim como o é na vida da maioria dos
estudantes: um sempre ajudando o outro naquilo em que se é mais forte; e minha
casa sempre foi freqüentada por colegas, homens ou mulheres aos quais eu
ajudava em Português. Por isso, talvez, a vinda de “Maria Goretti” à minha casa
para estudar comigo, nunca tenha despertado qualquer tipo de atenção especial
de minha mãe. Ela a tratava bem como sempre tratou a todos os meus outros
amigos.
Outra coisa precisa ser dita: passei a ter uma espécie
de premonição, adivinhando quando Maria Goretti me visitaria. Cheguei mesmo,
aperfeiçoando meus sentidos, a saber quando essa visita era feita por
influência de Chiara. Sentia, como senti muitas vezes em sua visita, o desejo
de que o tempo parasse; e nem havíamos definido ainda nossa situação numa
conversa que esclarecesse tudo e diminuísse minhas dúvidas.
Faltava-nos – de verdade - essa conversa
esclarecedora. Naquele setembro de 64, ela aconteceu.
Em Matozinhos, anualmente, na primeira semana de
setembro, é celebrado o Jubileu do Senhor Bom Jesus, festa religiosa
tradicional, que congrega romeiros de todo o estado. Naquele ano, na
sexta-feira anterior ao grande domingo de fechamento, ela disse que iria me
procurar, que eu não me preocupasse porque ela me acharia.
Esperei ansioso toda a manhã e boa parte
da tarde até domingo, à hora da procissão. Antes de mais nada
é
preciso dizer que essa procissão é imensa e é o grande fechamento religioso da
festa. Acontece sempre ao cair da tarde, emenda com uma missa por volta das
dezenove, dezenove e trinta, e praticamente encerra o Jubileu, a tempo ainda de
os ônibus de romeiros tomarem os caminhos de volta às suas cidades de origem.
Tomei a procissão logo no início de seu
trajeto, quando ela passa na praça e desce até o Bairro de São Sebastião, antes
de voltar à Matriz. Incrível é que eu tenha escolhido um lugar para entrar na
fila da procissão e imediatamente descoberto que um pouco à frente se
encontrava Maria Goretti. Bonita e sóbria como sempre, com um vestido azul
claro, sapatos pretos e sobre os cabelos, um véu. Engraçado e inexplicável que
ela, uma menina de quatorze anos, estivesse, naquele instante, sozinha na
procissão. Convenhamos, não é um fato comum. Aliás, não me lembrava de ter
visto Maria Goretti alguma vez na igreja, em qualquer das missas do domingo,
por exemplo. Não tenho certeza, mas Seu Alcides e Dona Maria não eram de
freqüentar a igreja. E ela, ali na procissão, presença inexplicável, sem que
fizesse qualquer menção que tivesse me visto ali atrás dela, abandonou seu
lugar na fila, parou esperando que eu passasse e sussurrou:
- Vem comigo.
Na multidão, ninguém perceberia que
andávamos juntos, e isso nos deixou um pouco mais à vontade. Percebi pelo
sorriso doce, pelo perfume e pelo brilho nos olhos, que era Chiara quem estava
ali, naquele momento comigo. Ela disse-me:
- Vamos para a igreja porque é o lugar
mais seguro e tranqüilo agora que a procissão faz seu trajeto.
E
ela estava certa. Pouquíssimas pessoas estavam ali, talvez umas nove ou dez,
pessoas idosas que se poupavam da árdua caminhada que era a procissão.
Sentamo-nos em um dos bancos centrais, e eu a ouvi com surpresa, falando com
aquela maturidade que estava muito acima do falar de uma menina tão nova. E
aqui eu tento reproduzir a sua fala sem a verdadeira exatidão do momento. Faz tempo,
muito tempo, e os termos exatos são irreconstituíveis.
- Beto, vi pelo seu olhar que você já
sabe que sou eu, Chiara. Não me pergunte coisas que eu não posso responder.
Está na hora de definirmos a nossa relação. Sou extremamente ligada à sua vida,
e você também é profundamente ligado à minha. Nossa vida vai ser assim:
encontros quando for possível e muita paciência sua. Peço que você tenha muita
calma. Nossa ligação está acima de todas as coisas que você conhece, e se é
possível você entender, nossa relação é secular. Maria Goretti é uma amiga que
uso para falar com você. Não tente cobrar dela nada sobre qualquer manifestação
ou lembrança, porque ela não entende; embora se lembre vagamente que cede seu
lugar para mim, aceita que eu a use para falar com você, mas não tem controle
nenhum sobre o que eu falo. Ela, por enquanto, apenas tem uma tênue e confusa
lembrança depois de nossas conversas. No entanto ela aceita; agradeço muito
isso a ela, e assim ela é e será nossa cúmplice por muitos anos, enquanto nos
falarmos. Você, Beto, terá, no desenvolvimento de sua vida, uma história normal
como a de todos os homens: vai se casar, ter filhos, alegrias e tristezas como
todo o mundo. Só que não será comigo. Nossa relação tem um tempo marcado, e
você descobrirá esse tempo mais tarde. Entenda que tenho com você uma ligação
muito forte e uma forma especial e diferente de amor também. Só não podemos ter
nada carnal, porque nos fragmentaríamos; tudo é muito intenso, e seria muito
difícil recompor nossa relação depois. Quero que você me prometa que nunca vai
exigir isso de mim, até porque não podemos exigir mais de Maria Goretti. Na
realidade, você terá o bom senso de pedir a minha presença quando for
extremamente necessário e, sempre que for possível, eu estarei disponível para
você. Farei tudo para que você seja feliz a maior parte das vezes. Tenho que
agradecer-lhe por você nunca ter falado de mim para ninguém e garanto a você,
que haverá um momento em que eu te autorizarei a escrever a história de nossa
relação em um livro. Até lá, tenha paciência. Deixe-me ficar perto de você
assim como eu tenho ficado, e aceite-me assim, com sua doçura e carinho. Seja
atencioso com Maria Goretti sempre. Embora eu sinta que vocês não se falem
tanto e que provavelmente talvez nem venham a ser amigos íntimos, peço muito
carinho com ela. Sem ela nós não poderíamos nos falar. Um dia ela entenderá
melhor o que acontece quando do meu ato de usá-la e, assim, poderá até
favorecer nossa comunicação.
Comecei a chorar ouvindo-a e não tive meios de
contestá-la, exigir mais do que aquilo que ela propunha, cobrar mais a sua
presença ao meu lado. Tentei saber detalhes, quem era Chiara, de onde ela
vinha, e ela disse que mais, por aquele momento, não podia responder. Ficamos
depois em silêncio, de mãos dadas, mais ou menos uns quinze minutos. Ela me deu
um beijo no rosto, disse que ia embora e tranqüilizou-me dizendo que em breve
voltaria. Senti, então, como nunca havia sentido antes, a paz de uma igreja: o
silêncio quebrado apenas pelo ruflar de asas de andorinhas que voavam no imenso
salão e os sons longínquos do barulho das ruas.
Levei um tempo, um bom tempo, para assimilar tudo
aquilo.
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