38- 1967: OS ANOS DE CHUMBO
1967 foi até “fichinha” perto do que seria 68. 1968
foi um ano pior, tenso, pesado, e de acontecimentos que transformariam a
história do Brasil, acontecimentos gravíssimos, dos maiores de toda a ditadura
militar. Muita gente que ainda apoiava o regime deixou de apoiar aquele ano. Um
forte clamor nas ruas protestava contra a opressão daqueles dias.
No mundo inteiro, os jovens tomavam posição contra as
arbitrariedades.
Na França, liderados por Cohn-Bendit, os estudantes
armaram barricadas de resistência, ocupando universidades. Nos Estados Unidos,
os jovens pacifistas rebelaram-se contra a guerra do Vietnã. Na Argentina,
Itália, Alemanha, Chile, Iugoslávia, Polônia e muitos outros países, o
movimento estudantil contestador tomava as ruas. Parecia um rastilho de pólvora
estendendo-se pelo mundo.
Em abril, em Memphis (EUA), na varanda do Hotel
Lorraine, uma bala assassina calou Martin Luther King, outro de meus grandes
ídolos.
Também no Brasil, a coisa começou a pegar fogo. Logo
no início, em março, os militares mataram Edson Luís, um estudante secundarista
paraense no restaurante Calabouço do Rio de Janeiro. Foi a gota que faltava
para fazer transbordar a revolta de quem, como eu, começava a odiar aquele
regime castrador. Sua morte desencadeou um enterro acompanhado por cinqüenta
mil pessoas, uma conturbada missa de corpo presente na Igreja da Candelária e
preparou o Brasil para a famosa “passeata dos cem mil” em junho, no dia 26. Nas
outras capitais do Brasil também houve manifestações. Belo Horizonte não
fugiria à regra e à sua importância contextual. Participei de todas as
passeatas que eu pude, fiquei tentado a ir mais adiante na minha revolta, mas
não o fiz por minha mãe.
- Ainda bem que você teve bom senso. - falou-me Chiara
um dia.
- Bom senso e medo. -, falei.
Porque apesar de todas as loucuras que eu fazia, não
tinha coragem para decisões mais drásticas. Sabia através de Vanderley, um
amigo meu, que Patrício, João Carlos e Fred, secundaristas amigos meus da UCMG,
velhos companheiros de luta, estavam na clandestinidade.
Minha mãe tinha medo e me controlava para que eu não
me sentisse tentado a seguir esse caminho. Não criara filho nenhum para a
guerra, ela dizia.
Um caso interessante acontecera quatro anos atrás, no
dia 01 de abril de 64, quando tudo começou. A neurose anticomunista tomou conta
da “tradicional família mineira” e logo em seguida buscou-se cooptar jovens
para uma tropa de reserva caso os comunistas reagissem e houvesse mesmo a
guerra civil. Em Matozinhos, o apelo público foi feito através do serviço de
alto-falantes do Cine Municipal, através da voz de Romeu, o seu dono. Ouvindo a
conclamação de voluntários, Luciano entusiasmou-se e levantou-se da mesa de
almoço, dizendo:
- Vou me alistar!
A resposta da minha mãe veio na hora, tirando o
chinelo e colocando-o na mesa, ao lado da panela de sopa.
- Senta aí e pára de bobagem, que eu te dou uma
chinelada.
Com aquilo, ela dizia que filho dela, em hipótese
nenhuma, enquanto morasse com ela, se meteria em qualquer tipo de briga ou
conflito. Acabou ali, frente ao velho chinelo, o entusiasmo guerreiro de meu
irmão.
Em 68 fiz dezoito anos. Não que isso pudesse me
representar algum tipo de independência porque sempre fui muito livre. Tive
sempre a liberdade que a boa educação propicia. Nisso meus pais foram
exemplares. Meus dezoito anos, no entanto chamavam-me à responsabilidade:
definir que profissão eu iria mesmo querer, equilibrar minha vida sentimental,
e Matozinhos, por mais que fosse uma cidade que eu amasse muito, começava a
ficar muito pequena para mim.
Chiara me alertara um dia:
- Olha, ainda não aconteceu. Mas chegará o dia em que
Maria Goretti arranjará um namorado e não sei quanto tempo eu tenho para falar
através dela. Não se prenda a mim, você sabe disso. Não se esqueça que o mundo
lá fora é muito maior do que esta cidade de que você gosta tanto. É bom você se
preparar para novos desafios. Não tema.
Eu me dividia: tinha uma tesão enorme de sair
descobrindo coisas, mas Chiara me prendia. Via tudo o que poderia fazer em
Matozinhos se esgotando, mas adiava a arrumação da mala. Precisava pensar na
Universidade. Um teste vocacional que minha turma de colégio fez no Instituto
de Educação em Belo Horizonte, deu para mim, disparado, arte em primeiro lugar.
Minhas duas outras tendências, Letras e Jornalismo, ficaram nessa ordem,
segundo e terceiro, bem abaixo da primeira. Espantosamente, todos os meus
amigos, no final do teste, eram entrevistados por uma psicóloga. Eu fui
entrevistado por três, uma banca que me crivou de perguntas. Aquilo me assustou
e, ao mesmo tempo, deixou-me vaidoso.
Em Brasília, no mês de setembro, pronunciamentos
ofensivos aos militares, por parte do deputado Márcio Moreira Alves,
incentivando um boicote popular ao desfile do Dia da Pátria, irritaram os
militares. Era o que faltava para se acender o estopim do mais cruel de todos
os atos institucionais: o número cinco.
Em 12 de outubro, o movimento estudantil sofreu um
grande golpe: Em Ibiúna, estado de São Paulo, o Congresso Clandestino da UNE, o
30°, foi estourado pela polícia, sendo presos 1240 estudantes. Ainda em
outubro, o Brasil escapou de algo que seria terrível para sua história: o caso
PARA-SAR, tentativa fracassada de alguns setores radicais da aeronáutica de
seqüestrar líderes políticos (entre eles o ex-governador carioca, Carlos
Lacerda) e assassiná-los, jogando-os ao mar, a quarenta quilômetros da costa.
Felizmente o Brasil não teve que conviver com essa vergonha. Oficiais sensatos
denunciaram o esquema, abortando a desgraça.
No Rio, no III Festival Internacional da Canção,
Geraldo Vandré explode o Maracanãzinho superlotado, com a música “Pra Não Dizer
que Não Falei de Flores”, imediatamente provocando protestos de militares que
exigiram sua prisão. No fim desse ano, inclusive, Vandré, Chico Buarque,
Caetano e Gilberto Gil são “convidados” a deixar o país, sob pena de,
desobedecendo, serem presos. Era a briga da truculência e reacionarismo dos
militares contra os setores mais vivos e estimulantes da inteligência
brasileira.
Em dezembro, no dia 13, a mordaça negra tapava a
boca de todos. Costa e Silva e seus ministros decretaram o AI-5. Acabavam-se
assim, para dor de toda uma geração, quase todas as chances de se poder falar e
pensar com liberdade. Decretava-se o recesso do Congresso, davam-se poderes
quase plenos à Presidência, permitia-se a intervenção nos estados e nos
municípios, além do direito de suspensão de liberdades políticos de qualquer
cidadão brasileiro, suspendendo ainda, por abuso estúpido de poder, o direito
de hábeas corpus ou qualquer outra
apreciação judicial.
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