domingo, 17 de fevereiro de 2013

38 - 1967: os anos de chumbo



38- 1967: OS ANOS DE CHUMBO


1967 foi até “fichinha” perto do que seria 68. 1968 foi um ano pior, tenso, pesado, e de acontecimentos que transformariam a história do Brasil, acontecimentos gravíssimos, dos maiores de toda a ditadura militar. Muita gente que ainda apoiava o regime deixou de apoiar aquele ano. Um forte clamor nas ruas protestava contra a opressão daqueles dias.
No mundo inteiro, os jovens tomavam posição contra as arbitrariedades.
Na França, liderados por Cohn-Bendit, os estudantes armaram barricadas de resistência, ocupando universidades. Nos Estados Unidos, os jovens pacifistas rebelaram-se contra a guerra do Vietnã. Na Argentina, Itália, Alemanha, Chile, Iugoslávia, Polônia e muitos outros países, o movimento estudantil contestador tomava as ruas. Parecia um rastilho de pólvora estendendo-se pelo mundo.
Em abril, em Memphis (EUA), na varanda do Hotel Lorraine, uma bala assassina calou Martin Luther King, outro de meus grandes ídolos.
Também no Brasil, a coisa começou a pegar fogo. Logo no início, em março, os militares mataram Edson Luís, um estudante secundarista paraense no restaurante Calabouço do Rio de Janeiro. Foi a gota que faltava para fazer transbordar a revolta de quem, como eu, começava a odiar aquele regime castrador. Sua morte desencadeou um enterro acompanhado por cinqüenta mil pessoas, uma conturbada missa de corpo presente na Igreja da Candelária e preparou o Brasil para a famosa “passeata dos cem mil” em junho, no dia 26. Nas outras capitais do Brasil também houve manifestações. Belo Horizonte não fugiria à regra e à sua importância contextual. Participei de todas as passeatas que eu pude, fiquei tentado a ir mais adiante na minha revolta, mas não o fiz por minha mãe.
- Ainda bem que você teve bom senso. - falou-me Chiara um dia.
- Bom senso e medo. -, falei.
Porque apesar de todas as loucuras que eu fazia, não tinha coragem para decisões mais drásticas. Sabia através de Vanderley, um amigo meu, que Patrício, João Carlos e Fred, secundaristas amigos meus da UCMG, velhos companheiros de luta, estavam na clandestinidade.
Minha mãe tinha medo e me controlava para que eu não me sentisse tentado a seguir esse caminho. Não criara filho nenhum para a guerra, ela dizia.
Um caso interessante acontecera quatro anos atrás, no dia 01 de abril de 64, quando tudo começou. A neurose anticomunista tomou conta da “tradicional família mineira” e logo em seguida buscou-se cooptar jovens para uma tropa de reserva caso os comunistas reagissem e houvesse mesmo a guerra civil. Em Matozinhos, o apelo público foi feito através do serviço de alto-falantes do Cine Municipal, através da voz de Romeu, o seu dono. Ouvindo a conclamação de voluntários, Luciano entusiasmou-se e levantou-se da mesa de almoço, dizendo:
- Vou me alistar!
A resposta da minha mãe veio na hora, tirando o chinelo e colocando-o na mesa, ao lado da panela de sopa.
- Senta aí e pára de bobagem, que eu te dou uma chinelada.
Com aquilo, ela dizia que filho dela, em hipótese nenhuma, enquanto morasse com ela, se meteria em qualquer tipo de briga ou conflito. Acabou ali, frente ao velho chinelo, o entusiasmo guerreiro de meu irmão.

Em 68 fiz dezoito anos. Não que isso pudesse me representar algum tipo de independência porque sempre fui muito livre. Tive sempre a liberdade que a boa educação propicia. Nisso meus pais foram exemplares. Meus dezoito anos, no entanto chamavam-me à responsabilidade: definir que profissão eu iria mesmo querer, equilibrar minha vida sentimental, e Matozinhos, por mais que fosse uma cidade que eu amasse muito, começava a ficar muito pequena para mim.
Chiara me alertara um dia:
- Olha, ainda não aconteceu. Mas chegará o dia em que Maria Goretti arranjará um namorado e não sei quanto tempo eu tenho para falar através dela. Não se prenda a mim, você sabe disso. Não se esqueça que o mundo lá fora é muito maior do que esta cidade de que você gosta tanto. É bom você se preparar para novos desafios. Não tema.
Eu me dividia: tinha uma tesão enorme de sair descobrindo coisas, mas Chiara me prendia. Via tudo o que poderia fazer em Matozinhos se esgotando, mas adiava a arrumação da mala. Precisava pensar na Universidade. Um teste vocacional que minha turma de colégio fez no Instituto de Educação em Belo Horizonte, deu para mim, disparado, arte em primeiro lugar. Minhas duas outras tendências, Letras e Jornalismo, ficaram nessa ordem, segundo e terceiro, bem abaixo da primeira. Espantosamente, todos os meus amigos, no final do teste, eram entrevistados por uma psicóloga. Eu fui entrevistado por três, uma banca que me crivou de perguntas. Aquilo me assustou e, ao mesmo tempo, deixou-me vaidoso.
Em Brasília, no mês de setembro, pronunciamentos ofensivos aos militares, por parte do deputado Márcio Moreira Alves, incentivando um boicote popular ao desfile do Dia da Pátria, irritaram os militares. Era o que faltava para se acender o estopim do mais cruel de todos os atos institucionais: o número cinco.
Em 12 de outubro, o movimento estudantil sofreu um grande golpe: Em Ibiúna, estado de São Paulo, o Congresso Clandestino da UNE, o 30°, foi estourado pela polícia, sendo presos 1240 estudantes. Ainda em outubro, o Brasil escapou de algo que seria terrível para sua história: o caso PARA-SAR, tentativa fracassada de alguns setores radicais da aeronáutica de seqüestrar líderes políticos (entre eles o ex-governador carioca, Carlos Lacerda) e assassiná-los, jogando-os ao mar, a quarenta quilômetros da costa. Felizmente o Brasil não teve que conviver com essa vergonha. Oficiais sensatos denunciaram o esquema, abortando a desgraça.
No Rio, no III Festival Internacional da Canção, Geraldo Vandré explode o Maracanãzinho superlotado, com a música “Pra Não Dizer que Não Falei de Flores”, imediatamente provocando protestos de militares que exigiram sua prisão. No fim desse ano, inclusive, Vandré, Chico Buarque, Caetano e Gilberto Gil são “convidados” a deixar o país, sob pena de, desobedecendo, serem presos. Era a briga da truculência e reacionarismo dos militares contra os setores mais vivos e estimulantes da inteligência brasileira.
Em dezembro, no dia 13, a mordaça negra tapava a boca de todos. Costa e Silva e seus ministros decretaram o AI-5. Acabavam-se assim, para dor de toda uma geração, quase todas as chances de se poder falar e pensar com liberdade. Decretava-se o recesso do Congresso, davam-se poderes quase plenos à Presidência, permitia-se a intervenção nos estados e nos municípios, além do direito de suspensão de liberdades políticos de qualquer cidadão brasileiro, suspendendo ainda, por abuso estúpido de poder, o direito de hábeas corpus ou qualquer outra apreciação judicial.

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