37- O
RETRATO DE CHIARA
Eu sou uma pessoa que dorme pouco. Poucas horas de
sono me bastam e desde pequeno eu sou assim. Por isso leio muito, por isso
também eu penso muito e escrevo. Considero mesmo que dormir é um tempo perdido.
Tenho a avidez de produzir, de ler ainda um monte de coisas que eu não li, de
escrever ainda muita coisa que não escrevi, e ter condições, rigoroso que sou,
de atentamente conferir detalhe por detalhe de tudo o que eu me proponho fazer.
Gosto de ser assim. Mais que isso, preciso, pela minha natureza, ser assim. A
noite, inclusive, é maravilhosa para trabalhos intelectuais. O silêncio, a casa
dormindo, nenhuma interferência. É quando meu trabalho rende mais.
Uma vez, numa noite de pouco sono, resolvi, de
memória, pintar um retrato de Chiara. Na realidade, um retrato de Maria
Goretti, mas no qual eu pudesse traduzir o olhar de Chiara e sua expressão do
rosto, que é muito particular. Sei que é difícil ao leitor entender que as duas
tenham essa diferença, mas têm. Só Chiara tem aquele modo de morder levemente o
lábio inferior quando fala algo sério e medita. Só Chiara franze o cenho
daquele modo quando está preocupada ou, fazendo um certo charme, finge estar. E
eu quis capturar isso num retrato, mesmo sem a modelo, e pintando de memória.
Já disse que desenho desde criança. Pintar, pintar
mesmo, comecei de modo autodidata quando comprei as primeiras tintas em 1963.
Fiz várias experiências pintando a paisagem de minha janela, detalhes do meu
quintal, alguns vasos de flor de minha mãe e até algumas experiências com
auto-retratos, olhando-me no espelho. Hoje não me considero um pintor,
propriamente. Faço-a esporadicamente e em situações especiais. Minha verdadeira
atividade é o desenho. Naquela época eu ainda não tinha isso bem definido.
Armei o cavalete e distribuí as tintas na paleta,
escolhendo cores claras porque um retrato de Chiara deveria ser suave.
Esclareço, também, que normalmente eu não pinto assim como tentava naquela
noite. Evito a representação clássica e acadêmica e, desde muito tempo, busco
uma figuração particular com um traço menos convencional e mais contemporâneo.
Defendo mesmo a idéia de que o pintor não tem de fazer o que a máquina
fotográfica pode fazer melhor do que ele. Mas eu queria pintar Chiara da
maneira mais perfeita que eu podia. Aquele era um caso especial.
Sofri tentando conseguir durante umas duas horas, e
nada. Havia sempre um defeito: um traço pesado que quebrava a suavidade da
pele, uma expressão densa contrastando com o que eu buscava, e até mesmo a luz
que eu queria dar nos olhos falhava.
Tentei tudo e estava quase desistindo.
Abri a janela. A noite estava quente e bonita, com uma
lua enorme e um céu cheio de estrelas. Resolvi então sair para o quintal de
minha casa. Meus pais e todos já dormiam. O quintal da minha casa nova era
imenso, da frente até os fundos, de comprido, ocupava todo um quarteirão. Desci
até o fundo, até a cerca limite com a rua.
Lembro que apesar da hora, o vento trazia uma música
que vinha de longe, uma música italiana, parecia a voz de Sergio Endrigo.
Fiquei um tempo imaginando de onde vinha. Lembrei-me
das “Barraquinhas de São Sebastião”, tradicional festa em benefício da igreja.
Era época de elas acontecerem, e provavelmente era de lá que vinha aquela
música. Fiquei olhando o céu. Encantado com tantas estrelas.
De repente, do lado das “Três Marias”, revi as luzes,
as mesmas luzes que vi uma vez no bambuzal de Zé Fonseca e da viagem de volta
de Sete Lagoas. As mesmas cores, as mesmas trocas, a mesma coreografia. Dessa
vez demorou um pouco mais. Espantava que outras pessoas não as vissem, embora
àquela hora da madrugada, se houvesse mais alguém nas ruas, seriam pouca gente.
Pensei nos que ainda estavam nas festas de São Sebastião olhando para o céu
também e vendo o que eu via. Não era a minha primeira vez, mas era como se
fosse, tamanho o encantamento que elas me proporcionavam. Sabia, naquele
momento, que elas não tinham relação nenhuma com Chiara, como uma vez havia
pensado. Não tive medo, mesmo assim.
De repente, elas fizeram um trajeto diferenciado: um
movimento rapidíssimo de leste a oeste, tão rápido que ficava um rastro (um
fio) luminoso no céu. Na volta, a mesma velocidade. Depois, postaram-se de novo
no meio do céu, repetiram a coreografia das espirais e desapareceram de repente,
sem deixar o mínimo vestígio, a mínima marca, o mínimo sinal.
Olhei aquilo tudo extasiado e não entendi, mais uma
vez, os significados. Chiara me disse, um dia, que bastava entender essas
visões como algo lindo. Pensar assim não era suficiente para mim. Queria saber
mais. Aliás, queria saber mais, muito mais, de muita coisa que acontecia em
minha vida.
Meditei olhando o céu vazio de depois, só com as
estrelas de praxe. Acreditava que elas ainda pudessem voltar. Desejava-as mais.
Como das outras vezes, aquilo não se repetiu.
Voltei ao meu quarto. O forte cheiro de terebintina,
produto que eu usava para dissolver as tintas, havia se impregnado em todo o
quarto. Abri as janelas e recostei-me de roupa mesmo na cama. Dormi. Fui
acordado mais tarde com uma sensação estranha, um zumbido forte em meu ouvido e
uma tonteira leve que senti quando me sentei na cama. Alguma coisa me botou de
pé, fez com que eu acendesse as luzes do quarto e buscasse de novo o pincel
para pintar. Eu, apesar da zonzeira do corpo e do zumbido fino no ouvido, tinha
noção de tudo que eu fazia. Misturei vermelho-de-cadmio com branco até
conseguir um rosa clarinho, coloquei uma pitada suave de carmim e adicionei um
pouquinho de ocre. Pronto. Conseguira o exato tom de pele de Maria Goretti. Uma
pitada de preto misturado ao azul, um leve toque de sombra nas pálpebras e
encontrei o toque que faltava para o olhar de Chiara. Resolvia-se ali, em
pouquíssimos minutos, os problemas daquele retrato que me afligiram toda a
noite. Dei-me por satisfeito.
Aos poucos, o zumbido afastou-se de meu ouvido, a
zonzeira do corpo foi dando lugar a um sono leve. Fechei a janela do quarto, o
cheiro forte do solvente fora carregado para fora pelo vento, e dormi. Um sono
intenso e reparador.
No dia seguinte de manhã, confirmei que não havia sido
um sonho. Estava ali o retrato de Chiara, ou de Maria Goretti, ou das duas.
Importava que eu havia conseguido representar aquele rosto e particularizar, no
detalhe daquele olhar, a expressão de Chiara.
De manhã, saí às ruas na esperança de encontrar alguém
que houvesse visto as luzes. Não ouvi comentários. Vi o ritmo normal da cidade
confirmando-me que ninguém havia compartilhado comigo aquele espetáculo.
Na tarde daquele dia, procurei Maria Goretti com a
tela embrulhada e lhe dei de presente. Ela abriu, ficou feliz, surpresa e
elogiou minha habilidade. Sabia que quem eu buscara naquele retrato era Chiara,
não ela.
No dia seguinte, na hora dos estudos, foi Chiara quem
veio ter comigo. Entrou em casa, me deu um abraço, dois beijos e agradeceu o
retrato.
Eu correspondi àquele abraço e agradeci, silencioso,
as luzes do céu.
Maria Goretti tem esse retrato até hoje e, segundo
ela, poucas pessoas o sabem...
Nenhum comentário:
Postar um comentário