quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

6- O dia em Chiara foi embora



Atenção, amigo leitor: recomendo, caso esteja iniciando a leitura agora, ler também os cinco posts anteriores, para melhor compreensão da história.




6- O dia em que Chiara foi embora



Acho importante descrever para vocês o quarto onde eu brincava quando Chiara me apareceu pela primeira vez. Era uma peça comprida, com cinco camas. Ali eu dormia com meus quatro irmãos homens. E era ali que eu brincava boa parte do tempo. Esse quarto era próximo de um outro, usado por minha mãe como quarto de costura, todas as tardes, depois de arrumar a cozinha do almoço. Gostava da companhia dela (minha mãe) e ficava ali, desenhando, colorindo e aprendendo a ler. Aqui explico a importância do espelho. Do ângulo de minha cama ou da mesinha onde eu desenhava, eu enxergava o outro quarto por um espelho que, postado na parede em frente, refletia aquele recanto em que eu via a máquina de costura e minha mãe costurando.



Meus irmãos a essa época já trabalhavam, o que explica o fato de sempre eu estar sozinho com minha mãe durante as manhãs até a hora do almoço e depois toda a tarde, enquanto ela costurava. É importante dizer também que, na maioria das vezes, Chiara, minha “amiga imaginária” surgia de manhã, um pouco antes das onze, quando, com certeza, eu estaria sozinho no quarto. Eventualmente ela me aparecia no quintal. Eu tinha um balanço no abacateiro e passava também ali uma boa parte dos dias. Nas vezes em que ela se encontrou comigo no quintal, ela me chamava para brincar no quarto. É engraçado que eu não me lembre de como fazíamos para chegar até o quarto, se inevitavelmente tínhamos que passar pela cozinha. E é importante dizer que, quando a vi pela primeira vez, enxerguei-a no espelho, no outro quarto, olhando-me. Não tive medo, tive curiosidade. Depois entrei no quarto de costura, ela estava ali de pé e me sorriu. Convidei-a para brincar e descobri que ela tinha um perfume gostoso.

Para descrever melhor o fato e até explicar para a maioria dos que estão me lendo e não sabem nada de minha vida, tenho que dizer que eu sou o caçula (nasci em 1950) de uma família de sete irmãos: Laura, irmã querida, minha madrinha de batismo, infelizmente já falecida, Margarida (Nem), José (Zezé), Christiano, Lúcio (também falecido) e Luciano. Gêmeos esses dois últimos. Eu sou a raspa do tacho, como se diz em Minas. Antes de mim houve ainda o Carlos, que morreu bem novinho, ainda em Barão de Cocais, cidade na qual meus pais e irmãos moraram um tempo antes de eu nascer. Meu pai, José, conhecido por todos como Zé do Armazém, e minha mãe, Maria, conhecida por todos como Maria de Zé do Armazém, infelizmente também já falecidos. Nasci na vila industrial de uma usina de açúcar, chamada Santo André, onde meu pai trabalhou de 1948 a 1962, depois de ter sido caixeiro e dono de um armazém, como seu apelido denuncia, e depois de curtas temporadas em Caeté e Barão de Cocais. Minha cidade é minha muito querida Matozinhos, pequena, mas acolhedora, na zona metalúrgica mineira, microrregião do Alto do Rio das Velhas, pertinho de Belo Horizonte, (52 quilômetros).

Lembro que, nesse tempo, minha irmã Margarida, que em casa tratamos por Nem, era professora e começara a me ensinar a ler e escrever. Na realidade, aprendi a ler e “desenhar” meu nome sozinho. No ano anterior, com quatro anos, surpreendi meu pai lendo de forma trôpega (é claro!) uma manchete de jornal que nunca esqueci: “Café Filho assume o Governo”. Perguntei para o meu pai se Café era também nome de gente e, espantado, ele me viu lendo nas costas do jornal que ele tinha nas mãos. Era, naturalmente, a época do suicídio de Getúlio, e foi com essa notícia que descobri, por acaso, que também já sabia ler.

Mas, como dizia, minha irmã resolveu aproveitar essa precocidade e trabalhou minha alfabetização. Aprendi a escrever Betinho, desenhando letra por letra, por causa da minha facilidade para o desenho, desde essa época. Eu já desenhava muito, graças aos incentivos de Luciano, um dos gêmeos, à época um exímio desenhista de gibis feitos em papel de pão ou cadernos pautados. Minha irmã resolveu investir um pouco mais e passou a me incentivar, com um certo rigor, a escrever Geraldo e depois Roberto, meu nome composto.

E foi numa dessas tardes em que eu cumpria a tarefa que minha irmã havia me dado, de escrever não sei quantas vezes os meus dois nomes, que Chiara me apareceu dizendo que ia me ensinar também a escrever o nome dela.

Escreveu ali, no meu caderno, seu nome com uma letra muito redonda e pediu que eu copiasse. Penso agora, como adulto, que talvez fosse difícil para mim, se já estivesse de fato alfabetizado, entender o “CHI” de Chiara, quando o som da palavra sugere um “QUI”... “Quiara”. Talvez fosse assim que eu teria pensado se, à época, pudesse entender que as palavras têm uma estrutura morfológica. De qualquer modo, Chiara não era um nome como os das meninas das casas vizinhas, com os quais eu estava acostumado e que fizeram parte de minha infância na Usina, como Ana Rafael e Maria Glicéria de Tião Loura, Gláucia e Elba de Seu Ataíde, Luzia e Ana Maria de Geraldo Junqueira ou Júnia e Jânia de Walter Ferreira, por exemplo.

        E ficou ali registrado, entre os Geraldos e os Robertos, mais ou menos umas oito Chiaras. Minha irmã, hoje, talvez nem se lembre, mas na época me perguntou que palavra era aquela, e me xingou pensando que eu brincava de escrever letras ao léu, ao invés de estudar como ela havia proposto.

        Comecei ali a sentir que as visitas constantes de Chiara se tornavam, às vezes, um problema em minha vida. Minha mãe mandava, lá da cozinha, que eu fosse pegar sol e brincar no quintal. E houve grandes intervalos de tempo em que ela não aparecia. Uma vez perguntei por que ela sumia e ela me respondeu: 

        - Não me deixaram vir.

        Uma vez, brincávamos falando alto, e minha mãe entrou no quarto pra saber a razão de eu gritar tanto. Disse, num repente, que eu brincava com a Chiara. Minha mãe perguntou: “Com quem?”; e ali, pela primeira vez, descobri que só eu a via. Não sei o que minha mãe pensou, mas me lembro de ela ter-me dito que não era bonito ficar falando sozinho e inventando amigos. Ela, que nunca gostou muito de me deixar brincar nas casas dos vizinhos com as outras crianças da vila, passou, a partir desse dia, a me deixar brincar com Chinho, Bubu e Marcílio, na casa em frente. Comecei, assim, a evitar Chiara; mandava-a embora assim que aparecia e depois sentia um vazio muito grande. Descobria ali, pela primeira vez, sem saber lidar com o fato, que era perto dela que eu gostava de estar sempre.

        Um dia, de repente, Chiara sumiu. Aproveitou a quebra do espelho e sem ter dito adeus, foi embora. Tudo muito confuso para minha cabeça. Passaria um longo tempo sem vê-la, e, naturalmente, no início, se abateu sobre mim uma grande tristeza e vazio. Minha mãe começou a se preocupar comigo, porque me alimentava pouco, passei a brincar menos e me trancava cada vez mais tempo no meu quarto para desenhar. Ela não imaginava o que eu tinha. Chamou então Dr. Jurandy, o médico da família, que me receitou óleo de fígado de bacalhau, uma das coisas mais horrorosas que já bebi na vida. E o tempo passou adormecendo, sem afugentar, aquela lembrança da menina. Parecia que eu sabia que a qualquer momento ela poderia voltar...


Um comentário:

  1. Querido Geraldo, estou adorando acompanhar este "romance"! A descrição dos lugares, das pessoas, de um tempo tão maravilhoso... Dá vontade de estar lá, de fazer parte dessa história! Tens um dom muito especial com as palavras...
    Ah, a propósito, o tal óleo do fígado de bacalhau também "marcou" minha infância! Muito o tomei sob o pseudônimo de "Emulsão de Scott". No rótulo um homem carregando um bacalhau gigantesco nas costas...Provavelmente o "psicopata" do Scott; que fez o favor de inventar que aquela gosma branca fortificava as crianças. rsrsrsrs

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