domingo, 13 de janeiro de 2013

3- Meu mundo



3- Meu mundo

Todas as condições foram oferecidas para que eu tivesse uma infância muito feliz. Aliás, a época era muito propícia, porque a minha cidade era pequena, desenvolvia-se num ritmo coordenado, e a vida oferecia-se com boas perspectivas: o Brasil experimentava um ritmo novo depois da morte de Getúlio, aconteciam os esperançosos anos JK, muito embora meu pai tivesse sido ardoroso defensor da candidatura de Juarez Távora. O estado de Minas era governado por Bias Fortes, um governador mais famoso do que importante, e Matozinhos tinha como prefeito Waldemar Pezzini, com uma administração ativa e batalhadora por progresso.
De qualquer modo, se as condições da época não ofereciam confortos materiais como os dos dias de hoje com seus excessos de eletrodomésticos auxiliares, havia muita fartura: comida nunca nos faltou na mesa, inclusive com muita qualidade; e, conforto por conforto, bastava-nos nosso aparelho de rádio oferecendo-nos música, noticiário, futebol e as novelas de Amaral Gurgel, na Rádio Globo, do Rio. Eu gostava de rádio, assim como toda a minha família. Gostava principalmente de um programa musical chamado “A Lira do Xopotó”, que era o preferido do meu pai, apaixonado por bandas de música.
Morávamos numa casa boa, grande e confortável, na vila operária da Usina Santo André, local aprazível, com características rurais, de quintais amplos, um belo bosque, um açude, à época imenso (chamado Açude do Governo), fazendas vizinhas e ótima vizinhança. No setor onde morávamos, a vila de cima, eram vinte e três casas iguais. A única diferente, um pouco maior, era a da família do Sr. Geraldo Sanchez, gerente da companhia, onde pela primeira vez na vida, e em total encantamento, conheci a televisão. Minha casa, onde inclusive eu nasci, era a terceira do lado direito, na rua de trás. Tinha um alpendre grande, com um banco de ripas e formas arredondadas como os bancos de praça. A sala espaçosa, de poucos móveis e um rádio Philips de válvulas, nosso único eletrodoméstico de requinte. Depois, o corredor que levava aos quartos. Antecedendo-o, uma peça conjugada com sala de jantar e uma cozinha espaçosa, tendo como móveis uma mesa comprida, cadeiras, um banco extra, uma mesinha auxiliar e um grande fogão a lenha, com um depósito de água e serpentina que passava pelo fogo e nos garantia um confortável e gostoso banho quente. Na saída da cozinha, uma grande área coberta e avarandada, onde havia o tanque de lavar roupa, pequenos varais para dias de chuva, uma grande mesa de madeira e muitas avencas, samambaias, begônias, antúrios e violetas que minha mãe plantava com carinho. Na seqüência do corredor, havia o quarto dos meus pais, que dava janela para a rua, o quarto de minhas duas irmãs, e, à esquerda, o maior quarto da casa, que eu dividia com os meus irmãos e onde Chiara me apareceu pela primeira vez. Emendado a esse, havia ainda mais um, usado para passar roupa e para guardar a máquina de costura de minha mãe, o quarto do espelho. O banheiro, o único da casa, ficava no lado oposto do corredor, em frente ao quarto dos meus pais, e próximo ao quarto de minhas irmãs. No quintal, pés de mexericas, laranja-bahia, laranja-campista, laranja-da-terra, pitangas ameixa, romã, goiaba e o abacateiro, onde eu tinha o meu balanço, e sob o qual, nos fins de tarde, depois de barbear-se, meu pai tocava sua clarineta. Ele, que fora membro da extinta banda de música da cidade, mantivera o hábito de tocar todas as tardes, enquanto esperava a hora do jantar.
No centro do pátio, a caixa d’água sobre um espaço fechado usado como paiol.  Ali, em volta desse espaço, construí muitas vezes uma espécie de forte, onde brincava de índio, ou então imitava a lona de um circo, traçando um picadeiro, para reunir os amigos. Nosso quintal espaçoso permitia, ainda, que nos meses de outubro e novembro meu pai fizesse o que se chama de cultura casada: milho e feijão; o milho, quando verde, consumíamos em deliciosos mingaus que a minha mãe fazia, e também cozido ou assado nas brasas do fogão a lenha. Sobrava bastante, e depois de seco era debulhado e consumido pelas galinhas que criávamos. Eu era encarregado de socar o milho em um almofariz e fazer a canjiquinha para os pintinhos. Na extensão lateral do pátio, canteiros de hortaliças: alface, couve, tomate, abóbora, jiló, quiabo, temperos verdes. Nas cercas laterais, de tela, dividíamos com os vizinhos, redondos e volumosos chuchus extremamente saudáveis. Na frente da casa, minha mãe cultivava um jardim bonito, com margaridas, cravos, sempre-vivas, damas-da-noite, rosas de várias espécies e um perfumado cipreste, que durante anos nos serviu de árvore de Natal.
Como podem ver, uma casa de deixar qualquer criança feliz.
Nossos vizinhos com os quais dividíamos as cercas: a família de Walter Ferreira (ele, Dona Alzira, João Ailton, Juarez, Júnia e Jânia); a família de Tião Loura: ele, Dona Ana, Ana Rafael, Glicinha (Maria Glicéria), Chinho (Sebastião Loura Filho, grande amigo), Bubu (Marcelino) e Marcinho; Seu Tolendal e Dona Helena. Com todos mantínhamos excelentes relações.
Durante boa parte do ano, época da safra da cana-de-açúcar, um movimento intenso de trabalhadores temporários, caminhões abastecidos de cana e o imenso pátio da usina com sua grua gigantesca funcionando vinte e quatro horas por dia. Lembrança boa desse tempo era o melado de cana (delicioso com batata-doce), a garapa novinha extraída do moedor e mesmo a cana in natura, cortada no pé, para se descascar e chupar, principalmente a “caiana”, a mais doce e mais macia de todas.
Fora isso havia ainda a grande atração dos bosques vizinhos com suas frutas sedutoras: cagaitas, araticuns, pequis, guabirobas, jatobás, coquinhos alicuris, mangas e jabuticabas.
Entre a vila da Usina e o centro da cidade (praça da Matriz), existe o bairro da Estação, à época muito movimentado porque era o auge das ferrovias. O prédio da estação, chamado “estação da paz”, um dos mais bonitos de todos que já vi em diversas cidades, foi inaugurado em 1895 e impunha-se na paisagem com seus marcos arredondados de portas e janelões azuis. Esse bairro, muito agradável, possuía, no período, algumas casas comerciais, o que lhe dava uma certa independência. Ali se localizava, inclusive, a primeira escola que freqüentei: o Grupo Escolar Santa Terezinha, a mais ou menos uns quinze minutos a pé de minha casa. Cito isso tentando descrever bem outros lugares onde eu me encontrava com Chiara, antes de tentar me afastar dela.  Como eu ia para a escola a pé, eventualmente sozinho, pela linha férrea que era um caminho mais seguro, muitas vezes Chiara me acompanhou. Quase sempre ia comigo até as proximidades de uma casa importante do caminho, chamada Fazenda Azul, onde se despedia e me deixava seguir o caminho sozinho. Lembro dela dizer que tomava conta de mim. Caminhava comigo para não deixar que nada de mal me acontecesse.
Em todo o entorno da Usina, onde eu andava, podia encontrar Chiara, muito embora o lugar mais comum fosse mesmo o meu quarto, onde eu brincava.
Também quero demonstrar com isso, que não havia falta de opções de brincadeiras, lugares ou situações agradáveis na minha vida infantil, o que prova que “Chiara” não era resultado de nenhum tipo de carência...

Nenhum comentário:

Postar um comentário