3- Meu mundo
Todas as condições foram oferecidas para que eu
tivesse uma infância muito feliz. Aliás, a época era muito propícia, porque a
minha cidade era pequena, desenvolvia-se num ritmo coordenado, e a vida
oferecia-se com boas perspectivas: o Brasil experimentava um ritmo novo depois
da morte de Getúlio, aconteciam os esperançosos anos JK, muito embora meu pai
tivesse sido ardoroso defensor da candidatura de Juarez Távora. O estado de
Minas era governado por Bias Fortes, um governador mais famoso do que
importante, e Matozinhos tinha como prefeito Waldemar Pezzini, com uma
administração ativa e batalhadora por progresso.
De qualquer modo, se as condições da época não
ofereciam confortos materiais como os dos dias de hoje com seus excessos de
eletrodomésticos auxiliares, havia muita fartura: comida nunca nos faltou na
mesa, inclusive com muita qualidade; e, conforto por conforto, bastava-nos
nosso aparelho de rádio oferecendo-nos música, noticiário, futebol e as novelas
de Amaral Gurgel, na Rádio Globo, do Rio. Eu gostava de rádio, assim como toda
a minha família. Gostava principalmente de um programa musical chamado “A Lira
do Xopotó”, que era o preferido do meu pai, apaixonado por bandas de música.
Morávamos numa casa boa, grande e confortável, na vila
operária da Usina Santo André, local aprazível, com características rurais, de
quintais amplos, um belo bosque, um açude, à época imenso (chamado Açude do
Governo), fazendas vizinhas e ótima vizinhança. No setor onde morávamos, a vila
de cima, eram vinte e três casas iguais. A única diferente, um pouco maior, era
a da família do Sr. Geraldo Sanchez, gerente da companhia, onde pela primeira
vez na vida, e em total encantamento, conheci a televisão. Minha casa, onde
inclusive eu nasci, era a terceira do lado direito, na rua de trás. Tinha um
alpendre grande, com um banco de ripas e formas arredondadas como os bancos de
praça. A sala espaçosa, de poucos móveis e um rádio Philips de válvulas, nosso
único eletrodoméstico de requinte. Depois, o corredor que levava aos quartos.
Antecedendo-o, uma peça conjugada com sala de jantar e uma cozinha espaçosa,
tendo como móveis uma mesa comprida, cadeiras, um banco extra, uma mesinha
auxiliar e um grande fogão a lenha, com um depósito de água e serpentina que
passava pelo fogo e nos garantia um confortável e gostoso banho quente. Na
saída da cozinha, uma grande área coberta e avarandada, onde havia o tanque de
lavar roupa, pequenos varais para dias de chuva, uma grande mesa de madeira e
muitas avencas, samambaias, begônias, antúrios e violetas que minha mãe
plantava com carinho. Na seqüência do corredor, havia o quarto dos meus pais,
que dava janela para a rua, o quarto de minhas duas irmãs, e, à esquerda, o
maior quarto da casa, que eu dividia com os meus irmãos e onde Chiara me
apareceu pela primeira vez. Emendado a esse, havia ainda mais um, usado para
passar roupa e para guardar a máquina de costura de minha mãe, o quarto do
espelho. O banheiro, o único da casa, ficava no lado oposto do corredor, em
frente ao quarto dos meus pais, e próximo ao quarto de minhas irmãs. No
quintal, pés de mexericas, laranja-bahia, laranja-campista, laranja-da-terra,
pitangas ameixa, romã, goiaba e o abacateiro, onde eu tinha o meu balanço, e
sob o qual, nos fins de tarde, depois de barbear-se, meu pai tocava sua
clarineta. Ele, que fora membro da extinta banda de música da cidade, mantivera
o hábito de tocar todas as tardes, enquanto esperava a hora do jantar.
No centro do pátio, a caixa d’água sobre um espaço
fechado usado como paiol. Ali, em volta
desse espaço, construí muitas vezes uma espécie de forte, onde brincava de
índio, ou então imitava a lona de um circo, traçando um picadeiro, para reunir
os amigos. Nosso quintal espaçoso permitia, ainda, que nos meses de outubro e
novembro meu pai fizesse o que se chama de cultura casada: milho e feijão; o
milho, quando verde, consumíamos em deliciosos mingaus que a minha mãe fazia, e
também cozido ou assado nas brasas do fogão a lenha. Sobrava bastante, e depois
de seco era debulhado e consumido pelas galinhas que criávamos. Eu era
encarregado de socar o milho em um almofariz e fazer a canjiquinha para os
pintinhos. Na extensão lateral do pátio, canteiros de hortaliças: alface,
couve, tomate, abóbora, jiló, quiabo, temperos verdes. Nas cercas laterais, de
tela, dividíamos com os vizinhos, redondos e volumosos chuchus extremamente
saudáveis. Na frente da casa, minha mãe cultivava um jardim bonito, com
margaridas, cravos, sempre-vivas, damas-da-noite, rosas de várias espécies e um
perfumado cipreste, que durante anos nos serviu de árvore de Natal.
Como podem ver, uma casa de deixar qualquer criança
feliz.
Nossos vizinhos com os quais dividíamos as cercas: a
família de Walter Ferreira (ele, Dona Alzira, João Ailton, Juarez, Júnia e
Jânia); a família de Tião Loura: ele, Dona Ana, Ana Rafael, Glicinha (Maria
Glicéria), Chinho (Sebastião Loura Filho, grande amigo), Bubu (Marcelino) e
Marcinho; Seu Tolendal e Dona Helena. Com todos mantínhamos excelentes
relações.
Durante boa parte do ano, época da safra da
cana-de-açúcar, um movimento intenso de trabalhadores temporários, caminhões
abastecidos de cana e o imenso pátio da usina com sua grua gigantesca
funcionando vinte e quatro horas por dia. Lembrança boa desse tempo era o
melado de cana (delicioso com batata-doce), a garapa novinha extraída do moedor
e mesmo a cana in natura, cortada no pé, para se descascar e chupar,
principalmente a “caiana”, a mais doce e mais macia de todas.
Fora isso havia ainda a grande atração dos bosques
vizinhos com suas frutas sedutoras: cagaitas, araticuns, pequis, guabirobas,
jatobás, coquinhos alicuris, mangas e jabuticabas.
Entre a vila da Usina e o centro da cidade (praça da
Matriz), existe o bairro da Estação, à época muito movimentado porque era o
auge das ferrovias. O prédio da estação, chamado “estação da paz”, um dos mais
bonitos de todos que já vi em diversas cidades, foi inaugurado em 1895 e
impunha-se na paisagem com seus marcos arredondados de portas e janelões azuis.
Esse bairro, muito agradável, possuía, no período, algumas casas comerciais, o
que lhe dava uma certa independência. Ali se localizava, inclusive, a primeira
escola que freqüentei: o Grupo Escolar Santa Terezinha, a mais ou menos uns
quinze minutos a pé de minha casa. Cito isso tentando descrever bem outros
lugares onde eu me encontrava com Chiara, antes de tentar me afastar dela. Como eu ia para a escola a pé, eventualmente
sozinho, pela linha férrea que era um caminho mais seguro, muitas vezes Chiara
me acompanhou. Quase sempre ia comigo até as proximidades de uma casa
importante do caminho, chamada Fazenda Azul, onde se despedia e me deixava
seguir o caminho sozinho. Lembro dela dizer que tomava conta de mim. Caminhava
comigo para não deixar que nada de mal me acontecesse.
Em todo o entorno da Usina, onde eu andava, podia
encontrar Chiara, muito embora o lugar mais comum fosse mesmo o meu quarto,
onde eu brincava.
Também quero demonstrar com isso, que não havia falta
de opções de brincadeiras, lugares ou situações agradáveis na minha vida
infantil, o que prova que “Chiara” não era resultado de nenhum tipo de
carência...
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