quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Chiara (1)



Passo a publicar agora extratos de "Chiara" um livro que nunca publiquei por razões pessoais...




A AMIGA IMAGINÁRIA









Acordei com Laura, minha irmã, carinhosamente passando a mão em meus cabelos:

- Betinho, Betinho, acorda.  É hora do almoço.

Primeiro vi seu rosto como se detrás de uma neblina. Sua voz, um tom abaixo, parecia arrastada como um disco em rotação errada. Senti um perfume diferente, que até então eu não sabia o que era. Sabia, no entanto, que não era de Laura. Ela ali, me acordava e vi, aos poucos, seu rosto tomando foco. Pude ver também minha mãe, na porta do quarto, sorrindo, pano na cabeça e avental xadrez.

- Vem almoçar, meu filho, tá na mesa. – chamou-me docemente e contou-me que eu havia dormido agarrado na lata de botões com que eu gostava tanto de brincar.

Ninguém me falou da menina. Pareciam não saber que eu a tinha visto. Não havia sido sonho. Tinha certeza. Levantei-me para almoçar, meio zonzo, e a primeira coisa que fiz, antes de deixar o quarto, foi olhar insistentemente para o espelho. Refletidos ali, a cama em perspectiva, o quadro de São Geraldo, a máquina de costura e um velho tapete de sisal, azul e amarelo, enrolado e encostado à beira da cama. Apenas.

A primeira vez que “vi” Chiara, foi aí, no espelho, nesse dia. Esse dia foi há muito tempo, quando eu tinha cinco anos. Lembro do modo que é possível lembrar, de fato tão distante. Por ter sido tão marcante, guardei detalhes, mesmo que soltos, os quais agora, contando, tento encadear.

Coloco entre aspas o fato de tê-la visto, porque hoje, por mais que eu relute, a memória me vem assim fragmentada, parecendo que eu sonhei, que eu inventei, idealizando esse primeiro encontro. Importante dizer - e isso é certo - que me senti, por causa desse encontro e dos que o sucederam, amadurecer mais depressa que os outros meninos. Não senti nenhum peso nisso. Amadureci, até porque isso era uma conseqüência de tê-la conhecido. Uma de tantas outras conseqüências que seriam derivadas desses encontros.

Mas, eu falava de como ela, a menina, havia chegado, a primeira vez...

Um dia, de repente, me percebi tendo ela ao meu lado como companhia por algumas horas, fato que se repetiria nos dias seguintes. Não sei que mês era aquele. Lembro-me de ter cinco anos, e essas estão entre as minhas lembranças mais remotas. Era uma manhã quente e ventosa, detalhe esse que ficou grudado na minha memória como uma marca distintiva, assim como o perfume da menina, tão referencial. Havia um outro cheiro dessa manhã: o de doce de laranja-da-terra que vinha da cozinha feito pela minha mãe, no velho tacho de cobre que ela comprara de uma cigana, no último verão. Essas particularidades, eu adiciono à narrativa e elas me ajudam a montar a narrativa, sustentar a história e ver o fato como se fosse hoje e, embora pequenos hiatos se intrometam nas minhas lembranças, assim eu as vejo ou as sinto. Eu brincava sozinho em meu quarto quando a menina apareceu refletida no espelho, e isso é inesquecível. Eu brincava com uma lata de cera usada por minha mãe para guardar botões, era no meu quarto; e a casa, era a da Usina, onde nasci.

Pareço estar narrando um sonho. As lembranças chegam devagarinho, espremidas, enfumaçadas. Não me doem, mas me emocionam.

Importa dizer que sempre fui uma criança normal, que brincava com os outros meninos da vizinhança, embora minha mãe sempre me quisesse ter ao alcance da vista. Ela preferia que os amigos viessem brincar em nossa casa, ao invés de eu ir brincar na casa deles. A maior parte das vezes eu brincava sozinho, por opção. Nunca senti muita falta das outras crianças da rua, porque, criativo, consegui sempre fazer viagens fantásticas pelos mundos que eu inventava, pelos caminhos que a minha casa me propiciava e pelas sugestões de brincadeiras que eu me acostumara a ter com Lúcio e Luciano, dois dos meus irmãos mais velhos.  A menina, no entanto, talvez não fosse uma invenção.

Quando ela apareceu - isso eu me lembro-, incrivelmente não me assustei. Travei contato com ela e, em seguida, começamos a conversar e a brincar. Não me recordo, porém de vê-la saindo do espelho. Não lembro como, de repente, ela estava de pé, à minha frente. Lembro-me sim de perguntar seu nome. Chiara, ela disse. Claro que na época eu não saberia escrever o nome, posto que nunca ouvira falar em algo parecido. Recordo-me de ter achado engraçado ouvir aquele nome incomum. Isso foi marcante.

Calculo que tenhamos brincado uma meia-hora talvez, e ela, quando ouviu o movimento de meus irmãos chegando para o almoço, disse-me que precisava ir. Não sei como ela foi embora, se saiu pela porta, entrou de novo no espelho ou simplesmente sumiu. Deitei-me na cama com os olhos semi-cerrados e a vi afastar-se e sumir. Não consegui manter mais os olhos abertos. Dormi até ser acordado por minha irmã. Passei, então, o resto do dia pensando nela, como alguém que se lembra de um sonho bom. Nunca a esqueci.

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