domingo, 20 de janeiro de 2013

9- A MULHER DO TREM



9- A MULHER DO TREM


 Desculpem minhas idas e vindas no tempo e as ocasionais faltas de seqüência lógica nas minhas narrações. Agora, por exemplo, retrocedo a 1955 para contar um fato. Minha vida de criança foi cercada de casos inusitados. Um deles foi o da mulher do trem
Acho que o fato que vou contar aconteceu no meio do ano, maio ou junho, talvez. Falta-me naturalmente a certeza, porque eu era muito novo, isso faz parte das minhas primeiras lembranças ou do que sobrou delas. Inexplicavelmente houve um momento de minha vida (um bom tempo), em que, não sei por que razão, apaguei essa recordação de minha vida. São engraçadas certas coisas que acontecem com as crianças: esse fato que contarei, acompanhou-me durante um tempo razoavelmente extenso e um dia sumiu de minha memória, apagando-se e deixando de ser considerado uma de minhas referências. Ficou guardado numa espécie de gaveta que só mais tarde reabri. A recuperação da lembrança só se deu na minha fase adolescente, vendo uma vez, na tevê, um filme espanhol (eu acho) do qual não lembro o nome. Nem mesmo a história era parecida, apenas o fato, no filme, passava-se dentro de um vagão de passageiros, e havia uma moça, a bem da verdade, nem parecida com a da minha experiência. Essa cena acontecia só no final, e por isso não guardei maiores informações do filme. A tevê estava ligada, eu lia um livro e a princípio aquele enredo não me interessou. Mais engraçado é pensar que levantei os olhos para a televisão justamente no momento em que essa personagem aparece, chorando na janela do trem, enquanto a paisagem lá fora passa depressa, na última cena do filme. O trem é a única ligação. Além do mais, uma vez Chiara me disse, sem explicar, que os trens faziam parte da minha vida.
Lembrar-me disso talvez seja, também, uma referência da memória saudosa de quase todo mineiro que conheço, que na infância fez viagens de trem. E viajar de trem era uma constante nos meus primeiros dez anos de vida. Para nós, que morávamos na Usina, o trem de ferro era o transporte mais prático e acessível para Sete Lagoas, cidade vizinha, onde morava tia Maria, uma irmã do meu pai, ou então, no meio do caminho, para Prudente de Moraes, distrito (à época) de minha cidade, onde moravam meus tios Raimundo (também irmão de meu pai), sua esposa Bitu e meus primos.
Pelo menos uma vez por mês fazíamos essa viagem. Eu adorava. Adorava sentir a força daquele transporte. Hoje, praticamente não existem mais trens de passageiros, e a memória saudosa que me resta é simbolicamente a de um grande dragão resfolegante que cavalgávamos em aventuras imaginárias. Outra de minhas lembranças diz respeito a um fato especial: meu primo e padrinho Cristiano (filho de tia Maria) era funcionário da Rede Ferroviária e fiscal do trem. Com sua farda azul e um boné que hoje associo à “Gendarmerie” francesa, sempre vinha me cumprimentar durante as viagens. Impressionava-me que ele portasse sempre um objeto de metal, o furador de passagens, que eu associava com uma arma.
Mas o que mais me faz tomar essa história como um fato a ser contado é outra coisa: a presença da mulher, à qual já me referi. Só que não era uma mulher comum. Aliás, na minha vida, poucas mulheres foram comuns. Chiara é um exemplo.
Tratava-se (e eu sempre passo horas tentando rememorar aquele rosto com detalhes) da mulher mais bonita que eu já vi em toda a minha vida. Talvez possa parecer exagero eu afirmar assim com tanta convicção, até porque, agora, com sessenta e dois anos, não tenho mais certeza se o rosto que me vem à memória era de fato tão bonito assim, ou se é um rosto idealizado, a partir talvez de rostos de muitas artistas de cinema que eu também admirei. Explico: houve um tempo em que eu buscava incessantemente um rosto parecido com aquele, da moça do trem. Cheguei, em muitos momentos, a encontrar detalhes de semelhança em muitas atrizes, como Jean Arthur em “Do mundo nada se leva” e “Os brutos também amam”, e mais tarde em Candice Bergen de “Procura da verdade”. Mas era apenas o detalhe dos olhos claros e do cabelo louro, eu acho. Lembravam apenas isso. Não eram de fato parecidas. Essa mulher foi a minha primeira paixão, paixão de menino, paixão daquelas de me fazer suspirante várias horas do dia. Durante alguns meses, pensei nela incessantemente. Essa moça do trem estava sentada à minha frente: eu em uma poltrona entre minha mãe e meu pai. Para quem não sabe, tradicionalmente alguns assentos dos trens eram postados uns de frente para os outros. Isso facilitava, por exemplo, amigos que viajavam juntos poderem conversar. Lembro (e minha memória às vezes surpreende pelos detalhes) que chovia, porque o vidro da janela estava embaçado. Sempre gostei dos dias de chuva! E foi através do reflexo embaçado da janela do trem que, tímido, eu comecei a olhar para aquela moça.
Quando entramos no trem, a moça já estava lá, sentada, sozinha. Era frio, pois ela usava um mantô vermelho. Era também muito perfumada!
Meu pai pediu licença e nos acomodamos ali à sua frente. Ela sorriu para mim - um sorriso lindo. Perguntou o meu nome, e sua voz também era linda. Fico agora pensando se tantas virtudes que uso para descrever essa mulher do passado não são frutos de minha imaginação idealizadora. Pode-se compreender naturalmente se assim o for. Faz tanto tempo que não tenho mais certezas, apenas a memória de um fato bom, uma mulher bonita e uma manhã agradável.
Lembro que eu usava uma boina. Num determinado momento, a boina caiu à sua frente, e ela me devolveu, colocando ela mesma a boina na minha cabeça. Foi aí que senti seu perfume. Ela conversou um pouco com meus pais e eu pude ouvir (pra nunca esquecer) sua voz. Ela ainda me ofereceria uma bala. Gentilíssima! Não consegui desgrudar os olhos dela, mesmo que eu a olhasse pelo reflexo da janela. Lembro que eu a olhava tanto que ela perguntou se eu queria ser seu namorado. Fiz que sim com a cabeça, e ela me disse que eu era um menino bonito. Depois tirou um livro de uma bolsa, abaixou os olhos para a leitura, e eu pude continuar olhando para ela, pelo resto da viagem. Lembro-me da capa do livro: uma carruagem, cavalos brancos e mulher conduzindo os cavalos, vestida como uma cigana.
Quando chegamos em Sete Lagoas (e a viagem passou tão depressa!), ela se despediu dos meus pais e me fez um carinho no rosto. Inesquecível!
Para onde terá ido aquela mulher? Qual seria o seu destino naquela viagem? O que terá sido feito dela? Com certeza, foi a minha primeira paixão, daquela de dar (embora eu fosse novíssimo) uma dor de barriga deliciosa.

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