segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

5- O dia em que o espelho quebrou



5- O DIA EM QUE O ESPELHO QUEBROU



Um dia, lá pelo fim de maio, o espelho quebrou. Um escovão daqueles pesados que minha irmã usava para lustrar o assoalho bateu com o cabo ao seu encontro e o quebrou em vários pedaços. Do balanço onde eu brincava, pude ouvir o estalo do vidro se quebrando. Ouvi ainda o barulho dos cacos se espalhando. Minha irmã xingou, minha mãe foi ver o que era.
Entrei em casa quando juntavam os cacos. Varridos com a vassoura de palha, faziam um barulho parecido com as águas de um riacho. Ficaram presas, no prego da parede, a moldura dourada cheia de enfeites e o forro de papelão. Ficou também grudado, no cantinho da moldura, um santinho de marcar missal de São Geraldo, devoção de minha mãe. Sobrava no quarto, incrustado nas coisas, um leve e quase imperceptível perfume de Chiara. Os cacos maiores do lado contrário do reflexo eram de um amarelo cor de cobre, como um papel laminado. Eu nunca tinha visto as costas dos espelhos.
Pensei comigo: “Ela agora não tem por onde chegar.” Comecei a chorar. Um choro inexplicável para todos e que eu não conseguia conter. Todos queriam saber por que eu chorava, e eu não dizia. Não falava a ninguém sobre Chiara. Aquilo era um segredo meu.
Confesso que chorei com medo de que o caminho de vinda de Chiara, através do espelho, estivesse impedido naquele momento. Ao mesmo tempo, assombrava-me pensar que eu convivera tanto tempo com aquela menina que vinha através do espelho e só ali, no momento em que ele se quebrara, eu me dava conta do tanto que era estranha aquela situação. Medo e alívio. Acho que as duas coisas se misturaram. Talvez eu estivesse gostando de ficar livre daquilo tudo e ser como os outros meninos da rua. Não precisar mais esconder coisas de minha mãe, ou ter que disfarçar quando, inconvenientemente, ela chegava. Mas, ao mesmo tempo, veio uma tristeza que doeu na alma. Um bando de maritacas passou voando baixo e fazendo um barulho imenso. Pareciam rir daquilo tudo. Riam da minha dor. Arrancaram-me um suspiro profundo e doloroso! E havia o frio, embora, pelo que eu me lembre, ainda não fosse inverno. Era só eu ficar triste para que o frio surgisse. Sempre fora assim.
- Amanhã a gente compra outro espelho, disse a minha mãe, tentando me acalmar.
Talvez o outro espelho não abrisse o caminho para ela passar, eu pensei.
A quebra daquele espelho pareceu-me tão grave quanto, por exemplo, se pegasse fogo e queimasse toda a nossa casa. Bateu em mim aquela tristeza inexplicável. Minha mãe e minha irmã tentaram me consolar e depois desistiram. Laura, quando chegou do trabalho, também tentou falar comigo. Não adiantou nada. Era quinta-feira. Mesmo assim, vendo-me triste, Luciano ofereceu-se para me levar até a praça da igreja para tomar um sorvete.
Minha mãe precisou insistir para que eu fosse tomar banho. Devia ir com meu irmão. Não quis jantar, porém.
Havia ônibus para a parte de cima da cidade em quase todos o horários: alguma coisa como de hora em hora, talvez. A jardineira do Jovelino, como todo mundo chamava.
Fui levado ao bar e restaurante Cachorro-Quente, a única sorveteria da cidade. Sentei-me à mesa com meu irmão, e ele pediu-me um sorvete de duas bolas. O bar era enfeitado de espelhos. Da mesa, longe como estávamos, tive a ligeira impressão de divisar Chiara de passagem, refletida num deles e me sorrindo.
Naquela noite, de volta para casa, dormi e sonhei com Chiara: um labirinto, fim de tarde, luz do quase anoitecer, e ela vindo em minha direção. Sentamo-nos num banco de pedras no meio do labirinto. Ela me pediu que não ficasse triste. Não era por causa do espelho que ela não vinha mais. Eram outros os motivos, e ela não podia dizer. Disse-me que no futuro, quando eu fosse maior, era quase certo que ela viria de novo. Que eu ficasse tranqüilo. Levou-me ao centro do labirinto. Um lago de águas tão cristalinas que parecia um espelho. Nós dois claramente refletidos naquela água. Refletia-se também o céu do fim de tarde. Um bando de maritacas verdes passou voando em formação no céu. Não faziam barulho. Chiara, de mãos dadas comigo, apertou minha mão. Pediu que eu fechasse os olhos. Deu-me um beijo no rosto. Acordei vendo os reflexos da lua atravessando a vidraça da janela e projetando sombras na parede. Não tive medo. Em seguida dormi de novo.
Fui com minha irmã, à tarde, comprar o espelho novo.


Um comentário:

  1. Não li, ainda, as primeiras partes. Mas agora quero ler mais rápido. Gostei muito.

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