quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

12- Medo de morrer



12- MEDO DE MORRER

O medo de morrer foi uma grande preocupação minha durante certo período de minha infância, por volta do ano de 57.
Minha vida sempre foi assim, por fases. E essa fase de grandes medos começou quando morreu uma criança em nossa rua. Um menino pequeno, ainda de colo, filho de um amigo de meu pai. Levaram-me para vê-lo. Estava em cima da mesa da sala, num caixãozinho branco. Em minha casa, acostumamo-nos com a idéia da morte desde pequenos, concebendo-a como um fato natural do ser humano. Pelo menos era essa naturalidade que meus pais talvez quisessem que eu mostrasse enquanto estava ali, pela primeira vez num velório. Impressionou-me aquela criancinha parecendo de cera, como um boneco que não respirava. Não demonstrei nenhum medo, mas pensei muito, fiquei com aquela angústia imensa grudada no pensamento. Era difícil entender por que se morre.
Acompanhamos o longo enterro a pé, como eram os enterros em Matozinhos. Ouvi os sinos da igreja batendo, e aquilo dava uma tristeza danada. Cada badalada parecia acompanhar o suspiro desconsolado da mãe do menino, ao lado do caixão, amparada pelo marido e uma senhora. Ficava mais triste ainda quando se ouvia crescerem os barulhos das portas metálicas dos bares, desenrolando-se para fechar quando o enterro passava. E mais ainda, o que me impressionou sobremaneira foi o perfume adocicado das rosas que enfeitavam o caixão. Nunca mais eu suportaria o cheiro dessa flor. Nunca gostei também do cheiro de velas queimando. Lembra-me, sempre esse primeiro enterro a que assisti.
No cemitério foi tudo muito triste: a mãe, agarrada no caixãozinho, não queria deixar enterrar o filho. Todas as mulheres começaram a chorar com aquilo. Inclusive a minha mãe.
Voltamos para casa quando a tarde caía. Ouviam-se barulhos de cigarras nos matos do lado da rua. Todos os sons eram tristes.

Chegando a casa, bem no comecinho da noite, minha mãe mandou que eu recolhesse uns brinquedos que eu havia deixado de manhã no quintal. Estava quase escuro, muito frio, e no ar trazido pelo vento, senti o cheiro de rosas. Tive uma pequena tonteira, suei frio e não conseguia me mover, não conseguia correr para casa como eu queria. Salvou-me Lucio, chegando da rua com sua bicicleta e passando ali do meu lado, para guardar a bicicleta na varanda, perto da cozinha. Entrei em casa com ele e fiquei ali, por via das dúvidas, perto de minha mãe. Ela ainda me obrigaria a tomar banho, e aquele talvez tenha sido o banho mais rápido que tomei na minha vida.
Jantei pouco. Não tinha fome. Não conseguia deixar de pensar na criança morta. De noite, é claro, tive uma imensa dificuldade para pegar no sono. Naquela noite, por pavor, fiz uma coisa que há muito eu não fazia: mijei na cama. Minha capacidade imaginosa me fez enxergar o menino toda a noite, como o “boneco de cera” que me impressionara. Via-o em cima de uma mesinha do nosso quarto, que Christiano usava para estudar, como eu o vira em cima da mesa da sala de sua casa. A claridade da lua, entrando pela vidraça sem cortina, lançava, na parede e naquela mesa, sombras assustadoras, inclusive o farfalhar dos galhos da goiabeira projetados, em dimensão exagerada, como seres móveis, como num filme de pavor, passando na parede branca do quarto. Não faltou (poderosa imaginação!) o adocicado e enjoativo cheiro de rosas. Sonhei também: sonhei que estava no labirinto do jardim onde encontrava Chiara. Estava escuro. Chamava por ela, e ela não vinha. De repente enxerguei, lá no fim de um dos corredores do labirinto, aquele menino, pálido, sentado numa cadeira, olhando-me.
No dia seguinte, mais pavor ainda. Cismei que não ouvia o meu coração. Sempre ouvira dizer que quando se morria o coração parava. A cada vez que eu não percebia suas batidas, eu corria e saltava, apenas para ouvir de novo os batimentos salvadores. Naquele ano tive medo de morrer dormindo, tive medo de morrer na escola, tive medo de morrer envenenado chupando manga e bebendo leite, tive medo de morrer atropelado se saísse na rua: uma típica síndrome do pânico. Aquilo quase me atrapalhou os estudos, fez-me emagrecer e perder o apetite. Tinha medo de brincar e “morrer de repente”, como um dia ouvi meu pai contar que havia acontecido com o filho de um seu amigo.
Chiara, naquele ano, só me apareceu em sonhos. Lembro-me de que em um deles ela me disse que não precisava ter medo de morrer, “porque ninguém morre de verdade”. Aquela frase, vaga, no sonho, confundiu-me a cabeça. Perguntei para minha mãe, no dia seguinte, enquanto ela costurava, e ela me disse que quando uma criança morria, se houvesse sido batizada, ia pra céu e virava um anjinho ao lado de Deus. Eu não queria nem um pouco virar um anjo, e como medida de segurança, preferia ficar aqui mesmo na terra, mesmo que tivesse, de vez em quando, dor de barriga e dor de dente.

O medo dos mortos e da morte persistiu nas minhas noites. Durante o dia, as atividades com os brinquedos e com a escola me distraíam, embora eu estivesse sempre tratando de manter meu coração batendo, por via das dúvidas. Uma noite, vi (e talvez tenha sido um sonho) Chiara à beira de minha cama. Eu a olhava, tentava chamar meus irmãos e minha voz não saía. Por baixo das cobertas levei a mão ao peito e não senti meu coração. Senti minha pele gelada. Tentei mexer os pés, chutar as cobertas, e nada. Não me movia. Não conseguia ouvir minha respiração. Eu estava ficando sem ar, e o cheiro forte e enjoativo de rosas entrava pela janela estranhamente aberta. Depois de muito esforço consegui gritar. Saiu um grito fininho, por causa do pavor. Meus três irmãos que dividiam o quarto comigo acordaram e me acudiram. A camisa do meu pijama estava empapada de suor e eu estava num choro convulsivo. Minha mãe se levantou, trouxe-me água com açúcar e ficou ali, sentada na beira de minha cama, até que eu dormisse. Ela me disse que aquilo havia sido um pesadelo. Tenho dúvidas até hoje. No dia seguinte acordei com febre; minha mãe disse que eu não precisava ir à escola e Luciano me trouxe uma pilha de revistinhas novas que ele trocara com uns amigos. Fiquei na cama todo o dia e me senti seguro quando à tarde minha mãe veio para o quarto de costuras e ficou ali visível pelo reflexo do espelho novo. À noite, ela me fez uma reconfortante sopa de feijão, levantei-me um pouco para ouvir rádio com meu pai e tive um sono inteiro e sem sobressaltos.

 Contudo, aquele pesadelo parece ter fechado um ciclo. O que eu lembro é que depois dele os meus medos foram diminuindo, meu sono começou progressivamente a voltar a ser tranqüilo, e eu quase não me lembrava de conferir meu coração. A certeza dessa segurança se confirmaria quase no fim do ano, quando Paulo César, um colega de sala do Grupo Escolar, morreu de repente num domingo. Ficamos sabendo que ele era muito doente, e que aquele tipo de morte era esperada. Todos, da sala de aula, fomos à sua casa para o enterro na manhã de segunda-feira. Para evitar recaída, não quis entrar na sala e vê-lo. Vi apenas o caixão já fechado sair de casa, seus pais muito tristes, sua irmãzinha chorando, e o cortejo dobrar a esquina. Não quis acompanhar o enterro...


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