Um conto de "Ouvido absoluto", meu novo livro que sairá em breve
A PAIXÃO DE ROSÁRIO
Rosário tinha uma
paixão. Paixão escondida. Nicanor da farmácia.
Quantas vezes, quantos
sonhos..., acordando incendiada de desejos... e de pecados! Palpitações
bombeando o peito, gambiarras de luzes estalando estrelas tontas no cérebro,
coração acelerado, respiração sôfrega. Quantas vezes?
Nicanor... Nicanor! Comparava-o com JK, em uma foto de
cabeceira, destacada de uma revista: JK, o presidente, na varanda do Catetinho.
Pareciam gêmeos, pensou enquanto acarinhava os bicos dos seios por cima do
vestido. Suspirava profundamente, cada vez que fazia isso.
Amava-o de longe, com toda a dor que
representa amar amordaçada por uma distância difícil..., por não tê-lo para si,
nas noites frias que passava sozinha, por não tê-lo para si, para botar-lhe a
mesa, botar-se para ele na cama macia de chenille
azul, afagar-lhe os cabelos, esperá-lo com os chinelos, com o jornal, com o que
ele quisesse.
Rosário tinha trinta e nove anos e nunca experimentara um
homem. Nunca tivera na vida um beijo que lhe afogueasse a alma. Beijo na boca.
Beijo de língua. Só imaginava. Imaginava com a restrição que o pensamento
constrói. Teoria sem prática. Suposições. Apenas.
Abraços, só do falecido pai e do primo José Antônio. Do pai
um cheiro de loção guardado na lembrança. Do primo, o perfume oleoso da
brilhantina Glostora. Rosário sabia que abraço de parente não incendiava. Era
formal, contido, respeitoso. Não tinha a fagulha que eclode em fogo destravando
os freios do coração indomado. Não tinha.
Rosário
morava só. Vivia da aposentadoria que lhe deixara o velho pai. Ela e Bichano,
um gato brasino, única companhia de sua vida de solteira. Único que a ouvia,
paciente e ronronante, falar de Nicanor, sem nunca virar o disco.
Todos
os dias, de segunda a sábado, corria à janela quatro vezes por dia para ver
Nicanor passar. Disfarçada, atrás da cortina. Quinze para as oito, meio dia,
uma e meia e sete da noite. Religiosamente. Metódico, Nicanor e seus horários
da farmácia.
Rosário só suportava os domingos porque podia vê-lo na
missa. Missa das sete. O resto do dia, sem ver Nicanor. Rosário sabia tristes
os domingos. Iguais quase todos. Ao meio dia, cheiro de lasanha saindo das
casas como se todos comessem lasanha. Todas as mulheres, seus homens e seus
filhos. À tarde, os rádios transmitiam futebol e as mulheres faziam café para
seus homens. À noite, outra missa, às seis, e depois as famílias ao pé do rádio
ouvindo “Parada de Sucessos Tonelux” e o “Grande Teatro Lever”. As mulheres com
os seus maridos. Rosário só com o gato. Sozinha. Rosário odiava os domingos,
por só ver Nicanor na missa. Depois, o resto do dia sem vê-lo. Suspirando...
suspirando.
Rosário sabia tudo de Nicanor. Solteiro, quarenta anos, viva
sozinho com a mãe. Não se casara, mas é quase certo que muitas o desejaram.
Talvez ele estivesse se guardando para ela. Quando Rosário arriscava-se a sair
e passar em frente à casa dele nos domingos, via-o na varanda, de camiseta de
física, molhando as plantas e cortando as unhas. Às vezes ele a cumprimentava
com um meneio de cabeça e às vezes ele dizia “Boa tarde, Dona Rosário”. Rosário
sabia que ele era metódico. Amava-o assim mesmo e sonhava com ele etiquetando a
sua vida, todos os dias... até o fim. Afora a missa, ele nunca saía de casa aos
domingos. Era dos poucos homens que não ouviam futebol às quatro da tarde. Era
raro vê-lo fora de casa. Muito raro. Casa, farmácia, casa. Uma vez Rosário
viu-o sair em direção à casa das mulheres e voltar apressado enxugando o suor
do pescoço com um lenço. Aprendeu que esse era o seu programa de toda última
sexta-feira do mês. Metódico. Nessas sextas, Rosário passou a evitar abrir as
janelas.
Afora os “bons dias”, “boas tardes”, falara com ele duas ou
três vezes. Mais? Não tivera coragem. Uma vez quando foi comprar Cibalena na
farmácia, outra quando assistiram, quase juntos, ao desfile de sete de
setembro, e ele disse apontando os meninos do Colégio Machado de Assis: “No meu
tempo não tínhamos fanfarra”. Outra vez foi nas eleições, quando ele, mesário,
fora gentil segurando sua sombrinha enquanto ela votava. Falou alguma coisa do
tempo e como a cidade ficava suja com as propagandas das campanhas. Três vezes.
Três vezes inesquecíveis, e a memória de Rosário gravara o som da voz, a
entonação da voz, cada simples sílaba proferida, e repetia no pensamento,
repassando, feliz, a lembrança, como se aquilo fosse mais importante do que
tudo.
Houve raivas nesse tempo de paixão. Cinco ou seis vezes indo
à farmácia pra comprar um remédio inventado e sendo atendida por Maria Dalva, a
moça que trabalhava com ele. Nesses dias Nicanor manipulava receitas atrás da
estante ou aplicava injeções. Vontade de gritar: “Quero que o Nicanor me
atenda! Quero que o Nicanor me atenda!”. Mas Maria Dalva, mocinha enjoada,
chamando-a de dona, de senhora, cheia de salamaleques...
Pior era no confessionário. Padre Nelson perguntando
pecados, e Rosário tendo de contar dos sonhos molhados. Padre Nelson querendo
saber quem era o homem, e ela mentindo (mentir é pecado!) que era homem
inventado, da imaginação, parecido com Tyrone Power ou Errol Flynn. Ato de
contrição e dez ou doze ave-marias rezadas depois do confessionário, com a
sensação de culpa grudada na alma, sem ter como resolver: “Eu, pecadora, me
confesso a Deus, todo poderoso... quero
trepar com Nicanor!... perdão, meu Deus... perdão...”. A hóstia da comunhão
confrangida, queimando o céu da boca, embolando na garganta, o pão ázimo dissolvendo-se
na saliva... medo de morder o “corpo de Cristo”, pensamento rezando baixinho:
“me salva, Senhor, me perdoa, Senhor, sou uma pecadora apaixonada... preciso de
um homem, preciso de Nicanor..., me salva, Nicanor, me abraça, Nicanor...”.
Diz-se que o tempo é um rio caudaloso que se arrasta
destruindo tudo à sua volta. O rio do tempo, traiçoeiro, pegou Rosário. Um dia
ela se deu conta de que passara três anos à janela. O ano de 1958 vivia seus
estertores. E é feitio do tempo desesperançar os ansiosos. Rosário começou a
sentir essa desesperança quando fez quarenta e dois anos num dia cinzento de
dezembro. Num domingo, com cheiro de lasanha no ar e muitos gritos de gol
expelidos pelos rádios. Deu-se conta quando a paixão virou dor no seu peito.
E foi ficando triste, ensimesmada. O coração, inchado por
aquela paixão doentia, fermentava a dolorosa impossibilidade do prêmio amoroso.
Se já não era de muito falar, menos agora falava então, com as poucas pessoas
com as quais ainda se dava: o primo José Antônio, Cidinha, amiga solteira como
ela, e Maria do Carmo, colega da congregação das Filhas de Maria.
E também parou de comer. Emagrecia a olhos vistos. José
Antônio, Cidinha e Maria do Carmo, preocupados. Começou a enfraquecer e ter olhinhos
fundos com um ar de tristeza tatuado no olhar. Precisava de vitamina. Injeção.
Na farmácia, a solução. Levada carregada de tão fraquinha... recomendando com
um fiozinho de voz: “Quero que o Nicanor me aplique!”.
E assim foi
feito. Nas nádegas, porque o braço estava magrinho.
Difícil
descrever essas emoções particulares que serpenteiam viajantes pelo corpo,
nesses instantes em que algo parece carregar de novo as baterias fraquinhas. É
uma luz se acendendo no escuro. É um arrepio na espinha acordando sensações. É
uma voz milagrosa dizendo no ouvido: “Levanta-te e anda”. O toque! Talvez seja
melhor explicar esses sentimentos pela ótica de um toque que acende corpo e
coração. Nicanor, metódico, profissional..., mas também atencioso. Nem doeu a
injeção. Oleosa, era para doer. Mas havia a magia anestesiante do toque do
amado, a mão de pele lisa... faísca elétrica fagulhando a alma. Sem forças
ainda, mas num sobre-esforço esboçando um sorriso, Rosário agradeceu com os
olhos. E foram mais duas injeções. Dois dias felizes. Nicanor tão perto que
dava para sentir o cheiro da loção de barba: “Madeira do Oriente”, a mesma
marca que o pai usava. O melhor de tudo era a mão macia tocando o glúteo, para
separar o músculo do osso, colocando depois o algodãozinho e esperando o
pontinho de sangue estancar. Tão carinhoso!
Cumprido o
tratamento e com a atenção das amigas, Rosário recuperou até a cor. Precisava
comer. Disso se encarregaria Cidinha, seguindo recomendações de Nicanor – quase
médico. Polenta, caldo de carne, espinafre e feijão. Vitaminas.
Duas
semanas, dieta com método e Rosário reacendendo a luz da saúde. Só que, se
melhorasse, Nicanor se afastaria de novo, conjecturou tristemente. Duas semanas
era tempo longo demais e as lembranças boas começavam a se apagar. Rosário
precisava ver Nicanor, de perto. Não lhe bastava a janela.
Cidinha
trouxe a janta. Rosário agradeceu sorrindo, prometendo comer depois da novela
da Rádio Nacional. A amiga confiou.
Enquanto
Cidinha virava as costas, batia a porta e descia as escadas, Rosário fez
cálculos. Chamou então Bichano e ofereceu-lhe – quentinha – a polenta com caldo
de carne. Bichano deu voltas de felicidade em torno do prato, ronronou, comeu
tudo e lambeu-se todo, depois deitou no sofá para fazer a digestão. Rosário
olhou o calendário. Cinco a seis dias sem comer e seriam necessárias novas
injeções. Um arrepio de prazer e felicidade lhe queimou o peito.
Ah,
Nicanor... Nicanor!
Ótimo! Imaginei a Rosário, morando lá na Av Sta Terezinha!
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