quinta-feira, 8 de outubro de 2015

A PAIXÃO DE ROSÁRIO

                                                                          
Um conto de "Ouvido absoluto", meu novo livro que sairá em breve





 A PAIXÃO DE ROSÁRIO



  
Rosário tinha uma paixão. Paixão escondida. Nicanor da farmácia.
Quantas vezes, quantos sonhos..., acordando incendiada de desejos... e de pecados! Palpitações bombeando o peito, gambiarras de luzes estalando estrelas tontas no cérebro, coração acelerado, respiração sôfrega. Quantas vezes?
         Nicanor... Nicanor! Comparava-o com JK, em uma foto de cabeceira, destacada de uma revista: JK, o presidente, na varanda do Catetinho. Pareciam gêmeos, pensou enquanto acarinhava os bicos dos seios por cima do vestido. Suspirava profundamente, cada vez que fazia isso.
          Amava-o de longe, com toda a dor que representa amar amordaçada por uma distância difícil..., por não tê-lo para si, nas noites frias que passava sozinha, por não tê-lo para si, para botar-lhe a mesa, botar-se para ele na cama macia de chenille azul, afagar-lhe os cabelos, esperá-lo com os chinelos, com o jornal, com o que ele quisesse.
         Rosário tinha trinta e nove anos e nunca experimentara um homem. Nunca tivera na vida um beijo que lhe afogueasse a alma. Beijo na boca. Beijo de língua. Só imaginava. Imaginava com a restrição que o pensamento constrói. Teoria sem prática. Suposições. Apenas.
         Abraços, só do falecido pai e do primo José Antônio. Do pai um cheiro de loção guardado na lembrança. Do primo, o perfume oleoso da brilhantina Glostora. Rosário sabia que abraço de parente não incendiava. Era formal, contido, respeitoso. Não tinha a fagulha que eclode em fogo destravando os freios do coração indomado. Não tinha.
Rosário morava só. Vivia da aposentadoria que lhe deixara o velho pai. Ela e Bichano, um gato brasino, única companhia de sua vida de solteira. Único que a ouvia, paciente e ronronante, falar de Nicanor, sem nunca virar o disco.
         Todos os dias, de segunda a sábado, corria à janela quatro vezes por dia para ver Nicanor passar. Disfarçada, atrás da cortina. Quinze para as oito, meio dia, uma e meia e sete da noite. Religiosamente. Metódico, Nicanor e seus horários da farmácia.
         Rosário só suportava os domingos porque podia vê-lo na missa. Missa das sete. O resto do dia, sem ver Nicanor. Rosário sabia tristes os domingos. Iguais quase todos. Ao meio dia, cheiro de lasanha saindo das casas como se todos comessem lasanha. Todas as mulheres, seus homens e seus filhos. À tarde, os rádios transmitiam futebol e as mulheres faziam café para seus homens. À noite, outra missa, às seis, e depois as famílias ao pé do rádio ouvindo “Parada de Sucessos Tonelux” e o “Grande Teatro Lever”. As mulheres com os seus maridos. Rosário só com o gato. Sozinha. Rosário odiava os domingos, por só ver Nicanor na missa. Depois, o resto do dia sem vê-lo. Suspirando... suspirando.
         Rosário sabia tudo de Nicanor. Solteiro, quarenta anos, viva sozinho com a mãe. Não se casara, mas é quase certo que muitas o desejaram. Talvez ele estivesse se guardando para ela. Quando Rosário arriscava-se a sair e passar em frente à casa dele nos domingos, via-o na varanda, de camiseta de física, molhando as plantas e cortando as unhas. Às vezes ele a cumprimentava com um meneio de cabeça e às vezes ele dizia “Boa tarde, Dona Rosário”. Rosário sabia que ele era metódico. Amava-o assim mesmo e sonhava com ele etiquetando a sua vida, todos os dias... até o fim. Afora a missa, ele nunca saía de casa aos domingos. Era dos poucos homens que não ouviam futebol às quatro da tarde. Era raro vê-lo fora de casa. Muito raro. Casa, farmácia, casa. Uma vez Rosário viu-o sair em direção à casa das mulheres e voltar apressado enxugando o suor do pescoço com um lenço. Aprendeu que esse era o seu programa de toda última sexta-feira do mês. Metódico. Nessas sextas, Rosário passou a evitar abrir as janelas.
         Afora os “bons dias”, “boas tardes”, falara com ele duas ou três vezes. Mais? Não tivera coragem. Uma vez quando foi comprar Cibalena na farmácia, outra quando assistiram, quase juntos, ao desfile de sete de setembro, e ele disse apontando os meninos do Colégio Machado de Assis: “No meu tempo não tínhamos fanfarra”. Outra vez foi nas eleições, quando ele, mesário, fora gentil segurando sua sombrinha enquanto ela votava. Falou alguma coisa do tempo e como a cidade ficava suja com as propagandas das campanhas. Três vezes. Três vezes inesquecíveis, e a memória de Rosário gravara o som da voz, a entonação da voz, cada simples sílaba proferida, e repetia no pensamento, repassando, feliz, a lembrança, como se aquilo fosse mais importante do que tudo.
         Houve raivas nesse tempo de paixão. Cinco ou seis vezes indo à farmácia pra comprar um remédio inventado e sendo atendida por Maria Dalva, a moça que trabalhava com ele. Nesses dias Nicanor manipulava receitas atrás da estante ou aplicava injeções. Vontade de gritar: “Quero que o Nicanor me atenda! Quero que o Nicanor me atenda!”. Mas Maria Dalva, mocinha enjoada, chamando-a de dona, de senhora, cheia de salamaleques...
         Pior era no confessionário. Padre Nelson perguntando pecados, e Rosário tendo de contar dos sonhos molhados. Padre Nelson querendo saber quem era o homem, e ela mentindo (mentir é pecado!) que era homem inventado, da imaginação, parecido com Tyrone Power ou Errol Flynn. Ato de contrição e dez ou doze ave-marias rezadas depois do confessionário, com a sensação de culpa grudada na alma, sem ter como resolver: “Eu, pecadora, me confesso a Deus, todo poderoso... quero trepar com Nicanor!... perdão, meu Deus... perdão...”. A hóstia da comunhão confrangida, queimando o céu da boca, embolando na garganta, o pão ázimo dissolvendo-se na saliva... medo de morder o “corpo de Cristo”, pensamento rezando baixinho: “me salva, Senhor, me perdoa, Senhor, sou uma pecadora apaixonada... preciso de um homem, preciso de Nicanor..., me salva, Nicanor, me abraça, Nicanor...”.
         Diz-se que o tempo é um rio caudaloso que se arrasta destruindo tudo à sua volta. O rio do tempo, traiçoeiro, pegou Rosário. Um dia ela se deu conta de que passara três anos à janela. O ano de 1958 vivia seus estertores. E é feitio do tempo desesperançar os ansiosos. Rosário começou a sentir essa desesperança quando fez quarenta e dois anos num dia cinzento de dezembro. Num domingo, com cheiro de lasanha no ar e muitos gritos de gol expelidos pelos rádios. Deu-se conta quando a paixão virou dor no seu peito.
         E foi ficando triste, ensimesmada. O coração, inchado por aquela paixão doentia, fermentava a dolorosa impossibilidade do prêmio amoroso. Se já não era de muito falar, menos agora falava então, com as poucas pessoas com as quais ainda se dava: o primo José Antônio, Cidinha, amiga solteira como ela, e Maria do Carmo, colega da congregação das Filhas de Maria.
         E também parou de comer. Emagrecia a olhos vistos. José Antônio, Cidinha e Maria do Carmo, preocupados. Começou a enfraquecer e ter olhinhos fundos com um ar de tristeza tatuado no olhar. Precisava de vitamina. Injeção. Na farmácia, a solução. Levada carregada de tão fraquinha... recomendando com um fiozinho de voz: “Quero que o Nicanor me aplique!”.
E assim foi feito. Nas nádegas, porque o braço estava magrinho.
Difícil descrever essas emoções particulares que serpenteiam viajantes pelo corpo, nesses instantes em que algo parece carregar de novo as baterias fraquinhas. É uma luz se acendendo no escuro. É um arrepio na espinha acordando sensações. É uma voz milagrosa dizendo no ouvido: “Levanta-te e anda”. O toque! Talvez seja melhor explicar esses sentimentos pela ótica de um toque que acende corpo e coração. Nicanor, metódico, profissional..., mas também atencioso. Nem doeu a injeção. Oleosa, era para doer. Mas havia a magia anestesiante do toque do amado, a mão de pele lisa... faísca elétrica fagulhando a alma. Sem forças ainda, mas num sobre-esforço esboçando um sorriso, Rosário agradeceu com os olhos. E foram mais duas injeções. Dois dias felizes. Nicanor tão perto que dava para sentir o cheiro da loção de barba: “Madeira do Oriente”, a mesma marca que o pai usava. O melhor de tudo era a mão macia tocando o glúteo, para separar o músculo do osso, colocando depois o algodãozinho e esperando o pontinho de sangue estancar. Tão carinhoso!
Cumprido o tratamento e com a atenção das amigas, Rosário recuperou até a cor. Precisava comer. Disso se encarregaria Cidinha, seguindo recomendações de Nicanor – quase médico. Polenta, caldo de carne, espinafre e feijão. Vitaminas.
Duas semanas, dieta com método e Rosário reacendendo a luz da saúde. Só que, se melhorasse, Nicanor se afastaria de novo, conjecturou tristemente. Duas semanas era tempo longo demais e as lembranças boas começavam a se apagar. Rosário precisava ver Nicanor, de perto. Não lhe bastava a janela.
Cidinha trouxe a janta. Rosário agradeceu sorrindo, prometendo comer depois da novela da Rádio Nacional. A amiga confiou.
Enquanto Cidinha virava as costas, batia a porta e descia as escadas, Rosário fez cálculos. Chamou então Bichano e ofereceu-lhe – quentinha – a polenta com caldo de carne. Bichano deu voltas de felicidade em torno do prato, ronronou, comeu tudo e lambeu-se todo, depois deitou no sofá para fazer a digestão. Rosário olhou o calendário. Cinco a seis dias sem comer e seriam necessárias novas injeções. Um arrepio de prazer e felicidade lhe queimou o peito.

Ah, Nicanor... Nicanor!

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