segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Histórias da praia




               

                HISTÓRIAS DA PRAIA




SOLANGE ALVES BIERKINSKY

            Solteira, quarenta e três anos, curitibana, escriturária, salário de mil e seiscentos reais, econômica, férias de quinze dias na praia, na casa alugada pelo irmão: com este, a cunhada, quatro sobrinhos e nenhuma outra amiga para trocar inquietudes e impressões. Veio, neste dia para a praia bem cedo para fazer a manutenção da cor, conseguida com exposição intensiva ao sol, e apoio de um bronzeador barato. Biquíni amarelo combinando com as havaianas amarelas. Alta (1,78m), loira, celulite discreta, corpo ainda razoavelmente firme. Olhos ligeiramente verdes, escondidos por óculos de lentes grandes, muito escuras. Na cabeça, um pensamento remido num príncipe impossível, desconhecido e talvez inalcançável, posto que, nos últimos tempos, deixara de acreditar em ciganas, fotonovelas, horóscopos ou surpresas do destino. Na alma, um vazio sem ter a receita certa de como o preencher, Nos olhos, a tristeza de quem vê o mundo apenas como um imenso trem, sem paradas, devorando trilhos e indo..., indo para um infinito invisível. Irritada, em vésperas de se menstruar, com cólicas renitentes, porque essa é a sina das mulheres, e desesperançada porque não vê nenhum tempero, na vida sem sal, nos últimos dias. Está ali, incomodada pela areia fina do vento das dez, que lhe esfarinha o corpo, grudando no óleo de bronzear como se ela fosse um imenso bife à milanesa. De mal com o mundo, de mal com a vida, chupa sem prazer e alegria, um Chicabon com os lábios ardidos e branqueados com um rastrinho de Hipoglós...
            Olhando o homem mais velho que joga frescobol com uma moça bonita, pensa, inspirando o ar quente com odor de maresia:
            Que raiva, que eu não consigo tirar os olhos desse sujeito! Por que será essa atração... que eu não quero? Como eu tenho raiva que essa coisa incontrolável aconteça comigo! Como eu detesto esse tipo de homem! Olha lá, está se achando o maior gostosão da face da terra só porque está com essa meninota de corpo durinho. Será que é filha? Não, não deve ser. Não se parece com ele. Deve ser um caso. Aqui na praia, isso é comum. Coroões com meninas novas. Isso mesmo. Deve ser isso! Será que esse débil mental acredita que ela pode realmente gostar dele? Aproveitadora! Coitado! É burro, ainda por cima, como todos os homens que se acham um poço de charme, mas o charme que eles têm é na carteira recheada. É claro que essa cocotinha está de olho é na grana dele que deve ser muita. Meninazinha metida, se achando a coisa mais gostosa do mundo só porque está com tudo no lugar. Deixa estar, o tempo vai se encarregar de derrubar tudo aquilo. Ela, não deve nem fazer idéia do que seja uma vida de dureza e de trabalho. Só fica aí, no bem bom, sugando a grana do coitado. Coitado? Coitado, nada! Eu quero mais é ver esse imbecil quebrando a cara. E quero também ver esse sorriso dela se desmanchando. Bastava que ela experimentasse, um dia, um dia só, acordar cedo, pegar dois ônibus, agüentar as cantadas do seu Novak, todos os dias..., agüentar aquela pilha de serviço, aquele telefone que nunca pára de tocar e aquele salário mixuruca que eu ganho, na transportadora. Aí sim, que ela ia ver o que é bom. Olha lá a cara do outro! O sorriso! A careca! Sujeito trouxa! Será que ele acredita que alguma mulher possa gostar de um careca? Olha lá aquela barriga! Se ele continuar prendendo a respiração daquele jeito vai acabar tendo um troço! Olha o olho embevecido com que ele olha para ela. Parece que está se achando um Alain Delon! Coitado...

PAULO RICARDO ROSSI

Viúvo, quarenta e nove anos, passo-fundense, empresário, retirada média mensal de cinqüenta mil reais, férias de apenas dez dias na praia (por força dos negócios), em uma de suas muitas casas, com a irmã, o cunhado e a filha. Muitos amigos com quem trocar impressões sobre a vida e negócios. Veio para a praia, bem cedo, caminhou dez quilômetros, navegou um pouco em seu barco, telefonou duas vezes para o seu gerente, e se relaciona com o sol sem exageros e com moderação. O cabelo ligeiramente embranquecido nas têmporas denuncia maturidade e confere-lhe um charme discreto. Ágil ainda para a idade, típico de quem cultua o prazer pelos esportes. O corpo até razoável, barriga até que pequena e pouco flácida se comparado com os outros homens de sua idade na praia. O olhar expressivo e o rosto bem marcado denunciando uma história de que talvez tenha sido um rapaz muito bonito. Na cabeça a lembrança de um tempo feliz, não muito distante, em uma companheira amada tragicamente perdida. No coração, uma dor difícil de ir embora, mas conformando-se aos poucos, à medida que os papéis do calendário vão sendo trocados. Nas intenções, nenhuma pressa de esquecer, mas apenas a concordância que os dias passam lentos, como uma locomotiva vagarosa descobrindo estações e trazendo surpresas ora boas ora ruins; desconhecidas. Cabeça dividida entre o lazer e os negócios, porque essa é a sina dos homens, administrando o vazio, com sofrimento maduro, porque a vida, desde que perdera a mulher, insiste em ser sem sal e sem graça. Está ali, na areia jogando frescobol e com um olhar de paixão para a moça: sua filha, única alegria real que lhe resta.
            No voleio de uma bola, imprimindo força nos músculos para alcançá-la, vê de relance, a mulher bonita de biquíni amarelo, estirada na cadeira, como um lagarto abraçado pelo sol. Pensou, capturando um odor de flores, fugitivo talvez, de um óleo de bronzear:
            "Mulher interessante! Chama-me a atenção, mais que as outras, aqui na praia..., mesmo não sendo tão nova. Parece muito bem para a idade, Será que está sozinha? O que está acontecendo comigo? Será que devo...? Acho que devo! Preciso atender a minha filha e começar de novo a me aproximar das pessoas. Sinto falta de amizades, de sair e de me distrair depois da morte de Suzana, Sinto falta de sair com alguém... da companhia de uma mulher. Não agüento mais ficar sozinho, só trabalhando, trabalhando. Ela é bonita! Sim..., ela é bonita! Lembra até, vagamente, Marisa Berenson... Marisa Berenson loira. Tem até um certo charme... uma classe mal trabalhada...  Quicando, quicando a bolinha, perdido no tempo, pensamentos viajando, Paulo Ricardo, re-experimenta sensações. Por que tão escarrapachada...? Se não se torrasse tanto nesse sol, poderia reavivar o frescor de sua beleza. Precisa de alguém que lhe diga isso. Gostaria de poder dizer-lhe. Tem pernas bonitas, longas, como eu gosto! Conheço essa batida do meu coração...! Mãos bonitas...! São bonitas as suas mãos! Qual será a cor de seus olhos? Se ela tirasse aquele óculos...Pena as havaianas...acho tão brega...

ALINE ALBUQUERQUE ROSSI

            Solteira, vinte e dois anos, porto-alegrense, terceiranista de medicina, mesada de cinco mil reais, econômica e moderada, férias de trinta dias na praia, na sua casa, numa das muitas casas do pai, da família, apenas com o pai e dois tios, irmão e cunhada da mãe, um namorado arquiteto que só pode vir aos domingos, muitos amigos entre os jovens, com os quais troca impressões em agradáveis noites no clube e muitas manhãs e tardes na praia. Veio para a praia bem cedo porque gosta de ver o sol nascer e de andar sozinha, pisando as ondas que penteiam a areia. Estatura mediana (1,69m), cabelos curtos e castanhos, corpo cuidado de quem não se expõe ao sol sem necessidade, estilo esportivo e muito, muito charmosa. Olhos azuis realçados pela tez ligeiramente morena e o biquíni branco. Elegante até nos movimentos mais bruscos do jogo. Leveza de gestos, clareza de reações. Pés bonitos, mãos bonitas, seios firmes, pernas rígidas de quem cultua ginástica e cuidados. Nenhuma ruga, a não ser as provisórias marcas de expressão que dão personalidade ao rosto bonito e bem formado. Na cabeça, um desejo sincero de ver o pai (muito amado) feliz como antigamente. Na alma, uma saudade conformada e doce, da mãe de quem havia sido tão amiga, e a crença, de que a vida é um imenso trem, ora lento, ora veloz, que sorteia estações e deixa em cada uma delas, uma marca de surpresa: às vezes um ganho, às vezes uma perda. Cuidadosa com o pai, porque essa é a sina das filhas, triste porque não consegue ajudá-lo em sua tristeza. Está ali, tentando fazê-lo feliz, distraí-lo com o jogo, tentando abrir-lhe os olhos para a beleza do mar. No instante de um segundo, vendo o pai esticando-se para alcançar a bola, abarca a paisagem da praia ao fundo, como se congelasse uma fração do tempo. Vê os imensos costões de pedra cerzindo o mar e a mata nativa. Vê também o pai, que ama tanto, repentinamente transformado no único personagem daquele quadro da natureza, quicando a bolinha como se houvesse perdido o compromisso com o tempo.
            Constata-se feliz por estar ali com ele, e pensa suspirando lembranças como se ouvisse uma música ao longe: 
            "Que maravilha de mar! Como estou feliz que papai tenha vindo! Como é bom passar esses dias com ele, distraí-lo, ajudá-lo a superar as saudades de mamãe. Como eu o amo! Como eu o acho bonito! Como ele é bom! Como eu quero que ele possa ser feliz de novo! Como eu gostaria que ele pudesse conhecer pessoas, sair com alguém, se divertir, ter alegrias!  Quem sabe aqui na praia mesmo... conhecer alguém. Eu ficaria muito feliz e aliviada. Aquela senhora de biquíni amarelo? Quem sabe ela? Se eu não estou enganada... meu pai..., está se exibindo para ela. Será? Esqueceu até do jogo! Que "bandeira"! Vamos lá, meu velho. Devolve essa bola! Meu Deus, acho que é isso mesmo! Não é exatamente o tipo de nova mãe que eu procuro, mas não sou eu quem devo escolher. Preciso deixar de ser ciumenta. Quem sabe eu ajudo! Se eu jogar uma bola na direção dela, posso descobrir...    
                    
            O mar ondulante vai e vem, flutuando banhistas, pranchas e barcos. O sol varrendo a extensão da praia, realça o verde da água e o brilho da areia, recebendo, caloroso e aconchegante, os banhistas deitados que se revigoram. O vento, agora suave, amacia o calor, acariciando peles e cabelos. A natureza do litoral afinada e cúmplice cumpre seu papel de anfitriã dos homens, mulheres e crianças...
            Uma bola pinguepongueando no ar. Uma bola amarela premida pelo vento, direcionada por uma mão intencionada que, fingiu-se autora de um ato acidental, rompe o ar, toca numa perna e cai, escorrendo na areia, perto do guarda-sol, nos pés da mulher de biquíni amarelo.
            Um olhar (dela) irritado, confundindo-se, bloqueando-se. Um olhar (dele) desajeitado, ansioso, culposo. Uma onda de eletricidade. Ondas mal conduzidas, não sintonizadas. Um pedido de desculpas, sem resposta (pelo nervoso), a mão buscando a bola tocando, por descuido, um pedaço de perna. Um gesto, um safanão (não bruto, mas instintivo), uma voz inamistosa, ansiosa, dizendo "Faça o favor!", a outra voz, sentindo-se perdida, dizendo "Sinto muito!"
            O instante talvez errado. O momento indevido. Azares da escrita torta dissertando sobre um texto de equívocos. Sem consertos. Incompatível. Dois olhares chocando-se sem química promissora - que em outro lugar, outro momento, legaria -, desconcertando possibilidades de encontro, duas almas não se dando chance - tempo para diálogos.
            Uma mulher de biquíni amarelo, confusa, coração descompassado, desistindo da praia, sacudindo a toalha, tirando a areia dos chinelos, juntando as coisas, fechando o guarda-sol e indo embora com um passo pesado e uma nuvem nos olhos.
            Um homem se sentindo destreinado para o trato com as mulheres, se perguntando do seu erro, olho de quem parece ter sido pego cometendo um pecado e sentindo ainda, na pele do braço, um pouco do óleo da perna da mulher.
            Uma moça que só queria ajudar, tendo a sensação de que errou em seu gesto, tentando - sem conseguir - entender (como mulher) a atitude da outra. Entristecendo-se por colocar o pai na situação desagradável, perguntando-se qual teria sido a atitude certa, o porquê do insucesso, e achando tudo uma droga, porque estava se sentindo culpada.
           
            Alheios ao detalhe do desencontro, que não lhes dizia respeito e do qual nada perceberam, os outros banhistas olham um aviãozinho arrastando no céu uma faixa com propaganda de antiácido: conspurcando o azul do céu.

            Na noite que dará seqüência a este dia, provavelmente os três não terão bom sono. Solange terá sobressaltos, sentirá falta de ar e abrirá as janelas, olhando com lágrimas nos olhos e aflição no peito as estrelas no céu. Paulo Ricardo buscará - por reflexo - no travesseiro vazio, a presença da mulher que não está mais ao seu lado. Aline pensará que o sábado é urgência, ansiando por Adriano, o namorado arquiteto, pois sentirá - mais do que nunca - a carência de quem a console, lhe dê um abraço e proteção.     

2 comentários:

  1. Pobre Solange! Mais uma que foi traída pela TPM... Esse período é capaz de distorcer completamente a noção de realidade. A Aline, no momento, parece não estar sob o comando dos hormônios. Já o Paulo Ricardo... Extremamente interessante, mas perdeu "a mão", o "tino" com as mulheres!rsrsrsrs
    Muito bom! Lendo este conto, tudo parece tão simples de ser resolvido! Mas o autor, mais uma vez, foi brilhante! Não "resolveu"; inquietou, instigou à reflexão... Adoro esse "tempero" sempre presente em teus contos... Essa mistura de bom humor, de elegância, dos contrastes entre a maturidade e a juventude, valorizando o que há de melhor e apontando gentilmente as limitações de cada uma dessas etapas.
    Bom, sei que estou me tornado repetitiva mas...PARABÉNS, Geraldo! Tudo o que escreves é muito bom de ler! ABRAÇO!!!

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    1. obrigado Patrícia. Seus comentários são sempre carinhosos. Beijo

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