quarta-feira, 12 de dezembro de 2012



OS COMEDORES DE VIDRO


   
  Quantos passos tinha o seu quintal? Resolveu contar como forma de definir os limites do seu território. Da goiabeira de goiabas brancas, atrás do paiol, até a velha caixa d’água, quinze passos. Da caixa d’água até o canteiro de onze-horas da mãe, vinte e nove. Do canteiro de onze-horas até o moirão mais alto, treze. Do moirão até a guabirobeira perto do quarador, vinte e nove passos. Passos de menino. Ali era o seu mundo, seu universo de referências, palmo a palmo exaustivamente percorrido em brincadeiras, zonas de grama fofa, touceiras de capim meloso e moitas de espinho que evitava até de olhos fechados. Só ele sabia os lugares secretos, esconderijo das bolinhas de gude, o cemitério das formigas. Só ele.
      Naquele momento intrigava-o o olhar cobiçoso com que o inimigo novo da casa do lado olhava para suas terras. Chegaram no finzinho da tarde passada e a primeira coisa que fizeram foi olhar para dentro do seu quintal. Chegou a pensar no maracujazeiro entrelaçado na tela, oferecendo seus frutos para o outro lado. Era uma divisão à qual não estava acostumado. De cima do murinho da caixa d’água observou o movimento da outra tropa. Eram dois: o lourinho comprido e magro e o menor, barrigudinho e de cabelo espetado. Observava-os sem ser visto, controlando-lhes os movimentos e estudando possíveis estratégias de defesa. De onde estava, camuflado entre as tábuas, tinha uma visão geral que o privilegiaria numa guerra. A meio metro de alcance da sua mão, a mamoneira era fonte de munição certa e inacabável. Os dois bodoques de borracha de câmara de ar eram tão infalíveis que conseguiam acertar as latas de banha do lado da casa do invasor, alvo que usava quando a casa era vazia. Ali, o murinho era o posto da sentinela do “Forte”, onde tantas vezes brincara com amigos imaginários, defendendo-se dos índios, piratas e bandidos. Olhava e tinha a impressão de ser olhado. Às vezes, os dois meninos percorriam a cerca com os olhos e davam a impressão de se deter na caixa d’água. Por via das dúvidas, resolveu que aquela noite levaria para o quarto seu baú do tesouro: a caixa redonda de chapéu “Ramenzoni” que continha vinte e sete bolinhas, inclusive a esfera de aço que guardava para as horas fatais do jogo, o esqueleto quase inteiro de um rato e o vidro de álcool com o escorpião negro dentro. Seria, talvez, o seu tesouro que o inimigo ambicionasse tanto? Pensou naquele momento de meditação que seria bom outros meninos para brincar, uma vez que era muito sozinho. Sua irmã pequena não falava, não tinha dentes e só tomava mamadeira. Poderia até ser possível um trato de paz, poderia surgir quem sabe no futuro um acordo, mas por enquanto o desconhecido não mereceria diálogos, pelo menos até que provasse boas intenções. Inquietava-o que eles não se afastassem da cerca e insistissem em inspecionar seu quintal. De vez em quando os meninos chegavam perto da caixa d'água. Rastejavam por trás das mamoneiras e dava para ver as testas suadas, de tão perto que chegavam. Mamoneiras, pensou. Eles também tinham muita munição. Teriam bodoques?
      O grito da mãe chamando para o almoço interrompeu sua observação. Quase ao mesmo tempo a mãe dos meninos também os chamou. Guerreiros também têm fome, pensou. Enquanto descia da caixa d'água, viu seu pai chegando com o homem da casa do lado: o pai dos meninos. A bicicleta dele, uma "Göricke" verde e novinha, era mais bonita que a deu seu pai. Chegavam juntos para o almoço. O outro homem, louro como um alemão, mais alto e mais forte do que o seu pai. Já eram amigos. Pensou em como as pessoas grandes ficam amigas com rapidez.
      A angústia da observação o inquietara. Estava nervoso. Comeu surpreendentemente rápido o arroz com vagem e guisadinho de que gostava tanto. Recusou, para surpresa da mãe, o pudim de claras, seu preferido. Enquanto comia, não tirava os olhos da janela. Talvez os meninos fizessem o mesmo. Conseguiu ouvir o pai falar do novo vizinho, que ele também viera para trabalhar na fábrica e era tratorista. Breno, o nome. Conseguiu ouvir a mãe dizer que ainda não tivera tempo de fazer amizade, que a qualquer hora faria uma visita, afinal só chegaram ontem.
      Voltou para o pátio ouvindo a mãe dizer: "Menino, não vai brincar no sol depois do almoço. Faz mal". Prometeu ficar na sombra.
      Subiu na caixa d'água. Os meninos já estavam lá, olhando de novo, sentados no banquinho do abacateiro. Na sombra. Não haveria combates ao sol.
      Quando o sol diminuiu, achou que já era de se impor, mostrar que não tinha medo, mostrar que aquela terra tinha dono. Botou um punhado de mamonas no bolso, pendurou o estilingue no pescoço e pulou lá de cima até o chão. Mostrou coragem. Caminhou até aquela que seria uma linha imaginária que separava os dois quintais: o pequeno pedaço sem cerca, do lado da tela com o maracujazeiro. Precisava mostrar o limite. Mijou, caminhando mais ou menos dois metros, fazendo com o mijo a linha divisória. Mesmo que o sol viesse a secar a linha, o que importava era que tinham visto. O mijo foi tanto porque ficara toda a manhã sem mijar. Impôs respeito. O menor, barrigudinho e de cabelo espetado olhou-o com expressão de espanto. O maior riu um riso nervoso, se encolhendo e parecendo ter vergonha.
      O que importou é que houve por parte dos outros o entendimento imediato. Como entre os bichos, aquele era um código universalmente conhecido como delimitador de linhas. Todas as crianças entendiam. Entendiam também que tudo passasse daquela linha, de um lado ou do outro, passaria a pertencer ao dono do espaço invadido. Naquele instante o gato malhado atravessou a linha perseguindo uma borboleta. Bicho vivo não vale, concordaram telepaticamente.
      A tarde passou, as duas mães chamaram para o banho e para a janta. A noite seria a trégua da batalha.
      O dia seguinte foi o dia de exibir brinquedos. Levou consigo até a fronteira: o trator vermelho, os soldadinhos de chumbo e o carrinho de rolimã. Os outros trouxeram: o velocípede verde e os cubinhos de montar (do menor), uma carretilha de empinar papagaio, um jipe do tamanho de uma caixa de sapatos e uma bola G18, número 5 (do maior). A bola, linda, novinha e com os gomos alaranjados lustrosos! Teve inveja. Brincou sozinho com os amigos imaginários, fazendo com a boca o som do trator, brincou com os soldadinhos imitando os sons da batalha e lustrou as rodas do carrinho com uma flanela. Os outros atolaram e desatolaram o jipe, chutaram muita bola contra o muro e fizeram vários "oitos" com o velocípede, exibindo habilidades. Durou todo o dia a exibição dos brinquedos. Só pararam para o almoço e depois à tardinha, hora de se lavar e da janta.
      O dia seguinte trouxe uma surpresa. Cedo, bem cedo, parou na porta da casa dos meninos uma caminhonete de loja trazendo uma caixa grande. Houve uma certa alegria do outro lado e nenhum dos meninos veio no quintal. O que seria aquilo? Ficou ansioso para saber o que se passava. No almoço ouviu a mãe falar com o pai: a vizinha ganhou uma geladeira. Ouviu o pai falar com a mãe: bobagens! Modernidades! Não sabia o que era uma geladeira.
      Depois do almoço viu a mãe conversando com a vizinha perto do quarador, as duas se apresentando, a vizinha falando da geladeira, convidando a mãe para conhecer, a mãe mandando-o cuidar da irmã; iria rápido à casa da vizinha e já voltava. Ele queria ir junto, matar a curiosidade, mas, sabia, não adiantava teimar com a mãe.
      No meio da tarde a mãe levou para a vizinha um cesto de ovos. No fim da tarde, o susto: os meninos comiam vidro debaixo do abacateiro! Chupavam, lambiam e mordiam os cubinhos de vidro. Nunca vira aquilo! Os meninos de lá continuavam chupando, lambendo e mordendo vidro, olhando para ele como se exibissem uma faculdade que ele não tinha. Correu a contar para mãe, assustado.
 
      “Seu bobo, aquilo é gelo", explicou ela, rindo muito e alisando-lhe os cabelos. Gostava muito quando a mãe lhe alisava os cabelos. Ela o pegou no colo e disse o que era geladeira, para que servia, e que talvez um dia tivessem uma, iria tentar convencer o pai.
      Naquela noite, dormiu tentando imaginar como seria uma geladeira. De diferente em sua casa só havia o rádio. O resto era mesa, cadeira, o armário das louças, os guarda-roupas e as camas. Igual como na casa do padrinho, dos tios e na casa de Seu Antônio Carvalho, amigo do pai na rua de cima. Aquelas eram as casas onde já tinha ido.
      Quando o dia amanheceu, foi tomar café na cozinha. Comeu muito. Sonhar tinha dado fome.
      Bateram na porta, a mãe foi abrir. Era a vizinha e... os meninos!
      "Trouxe uns picolés pro seu filho, D. Neuza", ouviu a vizinha dizer, sem saber o que era picolé. Reparou que a voz da mãe dos meninos era tão bonita quanto a voz de D. Lídia, que cantava no coro da igreja.
      "Experimenta, Dudu, olha o que D. Inês te trouxe, meu filho", disse a mãe. Experimentou. Nunca, mesmo que viesse a conhecer todas as experiências do mundo, mesmo que crescesse, viajasse e experimentasse todas as maravilhas da culinária, os doces das melhores confeitarias do mundo, nada, definitivamente nada se assemelharia àquela delícia. Nunca experimentara, em seus oito anos, coisa tão maravilhosa. Picolés de groselha! A maravilha daquele adocicado licoroso, anestesiando a língua, fixando-se entre os dentes. Geladinho! Doce! Delicioso! Derretendo! Tinha que aproveitar depressa aquele prazer indescritível que se esfumava como algodão doce no calor da boca. Só que era gelado! Vidros avermelhados.
      Comeu e se lambuzou. Um, dois, três. Virou refresco friinho, que ele bebeu como alguém que nunca soubera que no mundo havia outras coisas tão deliciosas quanto o guisadinho e o pudim de claras da mãe.
      O estado em que ficou era de torpor. Igualzinho como no sonho de outro dia quando sonhou que voava. Não se preocupou que ali, na sua casa, estavam também os meninos que acompanhavam a mãe.
      Acordou depois do sonho do picolé de groselha. Ouviu, como se ouvem as vozes nos sonhos, a vizinha mostrar os filhos para a mãe. Olhou, como quem acorda, os dois olhando para ele e rindo, rindo de sua estupefação com os picolés.
      "Meus filhos, D. Neuza", disse a outra mãe, "Carlinhos e Zeca". Carlinhos e Zeca! Gostou de saber-lhes os nomes. O primeiro, o maior, o chefe; o segundo, o menor barrigudinho.
       “Meu filho ó o Eduardo, Dudu", disse a sua mãe, enquanto lhe limpava a boca vermelha com o avental. "Minha filhinha Ana Maria" (mostrando o nenê no berço). "Agradece pros meninos os picolés, Dudu".
      O olhar que se deram não precisava de palavras: era uma trégua na guerra. Guerra que de fato não houvera e não passara de exibição de forças.
 
     “Meus filhos estão matriculados na escola. Será que eles podiam ir com o seu? O Carlinhos vai ser colega do Dudu no segundo ano, seu marido disse para o meu. O Zeca começa agora no primeiro".
      Lembrou-se que as férias acabavam. Pensou no quanto passaram rápido. Lembrou do Natal quando ganhou o trator (ainda ontem!). Lembrou-se que era sexta e que segunda começava de novo: menos tempo para as brincadeiras, os deveres. Lembrou-se da mãe anteontem e ontem, encapando os cadernos e dizendo: "Dudu, meu filho, as aulas começam segunda". Não que não gostasse da escola, mas a magia do seu quintal superava tudo.
      A segunda-feira chegou com muito mais pressa do que gostaria. O quintal passaria a ser restrito aos fins das tardes, depois dos temas.
      Depois do café, cadernos na pasta, merendeira pronta, encontrar os meninos. Não se falaram nem se viram no domingo. Foram passear não sabia onde.
      Teve vontade de rir quando encontrou os meninos. Penteados e abotoados como quem vai à missa. Iriam pelos trilhos do trem, indicou o caminho com o dedo, fazendo-os acompanhar.
      Caminharam juntos metade do caminho sem se falar. Notou que o menor cutucava e provocava o maior. Na falta do que fazer, apanhou uma pedra e atirou longe. Exibiu maestria. O maior imitou o seu gesto e atirou outra. Não tão longe. Sentiu prazer na vitória. O menor também tentou. Mais curto ainda o tiro. O menor quebrou o silêncio, para alívio da situação.
       “Um dia a gente podia botá pedras no trilho pra fazê um desastre do trem".
      Era um dos seus, tinha certeza, concordou rindo e dizendo que talvez amanhã.
      O maior, encorajado pelo menor, perguntou se um dia ele lhe emprestava o trator. Ele respondeu que sim, dizendo que queria brincar de atolar o jipe e jogar bola com eles. Resolveram ali unir os exércitos. Se outros meninos viessem para as outras casas que estavam vazias, eles e os dois seriam aliados. Para sempre. Pensaram nas mamoneiras só nas duas casas. Seriam imbatíveis.
      Prometeram, com a sinceridade com que começa a parceria dos meninos, que seriam sempre companheiros. Trocaram merendas como prova de aliança. No recreio, na escola, brincaram juntos como se fossem amigos há séculos.

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